A História da Economia e os seus limites – por
Álvaro Garrido, in Público
O
crescimento rápido que a economia portuguesa evidencia nos anos de 1960 a 1973
constitui um facto económico saliente, é verdade, mas não lhe podemos atribuir
um valor absoluto. As demais dimensões da realidade que o podem explicar ou
contradizer não falam por si, nem tão pouco são captadas pela contabilidade
agregada do crescimento.
No espaço público português e noutras arenas de debate — ou de
combate tribalizado, muitas vezes sem discussão nem conhecimento — sucedem-se
as manipulações da história a preceito das batalhas políticas do presente. A
história e a memória não são construções neutras ou isentas de conflito. Se
dúvidas houvesse, é claro que a escrita da história e os trabalhos da memória
são assuntos do presente e por isso se diz que toda a história é contemporânea.
Importa reconhecer que a História académica, feita por
profissionais e assente em conhecimento especializado, não detém o exclusivo
das narrativas sobre o passado. No entanto, a História deve assumir um papel
decisivo na interpretação das sociedades no tempo. Precisamos dela para dar
sentido ao presente e imaginar o futuro.
Infelizmente, as redes sociais estão cheias de historiadores de
ocasião e nas livrarias é demasiado fácil encontrar livros de cordel que
reclamam novas versões da história e descobertas delirantes, sem rigor de prova
nem talento narrativo.
Em Portugal, os usos políticos do passado têm sido causa e
efeito de polémicas sobre o passado colonial, a violência política da ditadura salazarista e de outros regimes políticos e, com menor frequência, acerca do papel da mulher e de coletivos cuja voz está pouco inscrita na memória
social. Menos comuns costumam ser os debates públicos em torno de questões
económicas, seja a magna questão da convergência e da divergência (o progresso
e o atraso, como em tempos se diria), seja o problema das desigualdades, que os
historiadores económicos conhecem e estudam há mais de cinquenta anos.
Quase tudo foi dito e interpretado sobre a intervenção do
historiador económico Nuno Palma na convenção do MEL, em especial por Pacheco Pereira e Fernando Rosas, historiadores em cujos argumentos me revejo.
Nessa já famosa conferência, em que Palma vestiu a pele do
especialista que veio trazer luz sobre um assunto que, de repente, importa ao
debate político atual, as adversativas que usou não parecem nada inocentes. As
ressalvas fizeram parte da mensagem sentencial que a convenção pretendia emitir
sobre o fracasso da democracia portuguesa em matéria de desenvolvimento
económico. Era esse o móbil da intervenção e devemos reconhecer que a mensagem
passou.
Dado que vivemos num tempo em que importa “dissecar tudo” sobre
o passado recente (palavras presidenciais), importa lembrar que há diversas
formas de fazer História económica e que, entre os historiadores profissionais,
é imensa e quase intransponível a distância que se criou entre subdisciplinas e
maneiras de fazer História. Umas dessas barreiras reside na incomunicabilidade
entre os historiadores que fazem História política da época contemporânea e os
historiadores económicos (em especial os economistas-historiadores). O problema
é velho, mas tem contornos novos que, no contexto atual, se cruzam com os
movimentos políticos da federação das direitas que se prefigura.
Creio que boa parte do problema está no modo de pensar a
economia, nos seus pressupostos metodológicos e no modo como a História
económica se deixou tomar, exageradamente, pelas abstrações da “ciência
económica” que se pretende apolítica e ahistórica. É claro que há razões
académicas, relacionadas com o modelo de produção e difusão científica atual,
que ajudam a explicar essa tendência, mas não é essa a questão principal nem
aquela que aqui me ocupa.
A necessidade de expulsar a política e os factos sociais das
explicações económicas é um pressuposto metodológico da Economia convencional,
de raiz neoclássica, que tende a tornar a História económica um exercício de
economia retrospetiva. No plano metodológico, aprecio esse exercício, por vezes
muito sofisticado e apoiado em métodos econométricos e testes contrafactuais
criativos. Como dizia Eric Hobsbawm, esse tipo de História pode, até, ser um
bom detetor de absurdos, mas em regra oferece apenas uma visão esquemática e
tendencialmente abstrata da realidade económica, que não capta o pulsar das
sociedades humanas na medida em que opera numa linguagem muito distante do que
deve ser a escrita da História e porque evade da narrativa todas as demais
dimensões do “real vivido”. Nessa perspetiva redutora da História económica, os
factos económicos explicam-se por si próprios e são autossuficientes ou
destinam-se apenas a validar a teoria. Assim entendida, a análise do económico
pelo económico é um tique metodológico que, uma vez aplicado ao tempo
passado, resulta em interpretações históricas redutoras. Em regra, o método que
as sustenta elimina a contingência e a historicidade das ações humanas, isto é,
pouco atende à natureza injuntiva das diversas dimensões da realidade
histórica.
Não por acaso, Nuno Palma foi chamado ao MEL ou aceitou participar
na reunião das direitas imoderadas e inquietas, para ali apresentar uma
narrativa conveniente e pré-determinada sobre o desenvolvimento económico
português do pós-guerra à atualidade, com ênfase nos últimos anos da ditadura
de Salazar e Caetano. A narrativa apoiou-se em dados de contabilidade nacional
e, sem surpresa, adotou uma epistemologia das continuidades. Esta
perspetiva é muito comum na historiografia conservadora sobre o Estado Novo e,
obviamente, implica uma certa despolitização e a desvalorização do papel
histórico das ruturas políticas e das mudanças induzidas por movimentos
sociais.
Mais do que reelaborar e difundir uma interpretação sobre a
performance económica do Estado Novo no terceiro quartel do século XX, ou no
segundo fôlego de existência do regime, a tese que Palma trouxe ao MEL procurou
atingir o 25 de abril e diabolizar o PREC. Basicamente, sugeriu que o
desenvolvimento económico português, a abertura ao exterior e a convergência
com os países do “centro”, ainda que tenham sido processos tardios, foram
êxitos da ditadura que, entretanto, a revolução e as instituições democráticas
desbarataram.
Não é nova a tendência de recontar a história do Estado Novo
colocando em primeiríssimo plano o fenómeno de crescimento que Portugal
registou entre 1950 e 1973 e atribuindo à narrativa do “crescimento económico
moderno” – apenas uma imagem abstrata, cujo conceito vem de Simon Kuznets – um
valor absoluto ou um significado superlativo.
Sabemos do encantamento que este facto económico suscita, por exemplo,
nos alunos de Economia, e no homo economicus que há em cada um de nós. O
crescimento rápido e o fenómeno de convergência que a economia portuguesa
evidencia nos anos de 1960 a 1973 — em menor medida, de 1950 a 1973 — constitui
um facto económico saliente, é verdade, mas não lhe podemos atribuir um valor
absoluto. As demais dimensões da realidade que o podem explicar ou contradizer
não falam por si, nem tão pouco são captadas pela contabilidade agregada do
crescimento.
Basta lembrar dois negativos dessa fotografia excessivamente
otimista e distorcida da “idade de ouro” do crescimento económico português,
cujos diagnósticos são contemporâneos desse período de grandes paradoxos: o
insuspeito trabalho do economista católico e corporativista Adérito Sedas
Nunes, Portugal, sociedade dualista em evolução (1964); o ensaio do
engenheiro fabril e intelectual marxista João Martins Pereira, Pensar
Portugal Hoje (1971). Entre outros escritos daquela época que fazem mais
pela sua interpretação do que a insistência na imagem redutora de uma golden
age à portuguesa, os ensaios de Sedas Nunes e de Martins Pereira são
retratos eloquentes de um outro país e dos problemas estruturais que conviviam
com o crescimento rápido da economia — a emigração em massa para a Europa (não
por acaso, entre 1960 e 1973 a população portuguesa decresceu 3%), as tremendas
desigualdades sociais e assimetrias do território, o arcaísmo do mundo rural, a
miséria social e a ausência de modernidade. Problemas estruturais que a
História pode e deve discutir, mas de maneira séria e injuntiva, sem recalcar o
primado da política na vida económica e social de um fascismo que, afinal,
existiu.
A História da economia e os seus limites – por
Álvaro Garrido [professor-investigador de História Económica da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra], in Público, 1 de Junho de 2021 – com
sublinhados nossos.
J.M.M.
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