segunda-feira, 5 de julho de 2021

AS CONSPIRAÇÕES EM TORNO DE HITLER – ENTREVISTA A RICHARD J. EVANS

 


As conspirações em torno de Hitler – [Extracto] Entrevista a Richard J. Evans, por Bárbara Reis, in P2, Público

Entrevista Richard J. Evans As Conspirações em Torno de Hitler, último livro do historiador, fecha um círculo de investigação sobre a mentira, as fake news e o impacto da “História falsa” na democracia. Mais do que nunca, “temos de acreditar na verdade e na possibilidade de descobrir a verdade

Bem-vindo ao nevoeiro de fantasias, histórias deturpadas, invenções puras e provas forjadas. O historiador Richard J. Evans, especialista mundial no estudo do Terceiro Reich, dedicou cinco anos e mobilizou dez investigadores para analisar as teorias da conspiração à volta de Adolf Hitler.

O resultado é As Conspirações em Torno de Hitler — O Terceiro Reich e a Imaginação Paranoica (Edições 70, Almedina), nas bancas desde Maio. Passo a passo, papel a papel, texto a texto, o livro disseca cinco grandes teorias falsas repetidas há décadas e reaparecidas agora com novo vigor, como acontece “sempre nos momentos de crise”, diz Evans, “e nós estamos a viver uma crise”.

As cinco teses alimentam duas coisas: uma “próspera indústria de entretenimento” e o preconceito contra os judeus, há muito “um bode expiatório”, diz o historiador britânico em entrevista ao PÚBLICO.

A primeira teoria da conspiração que Evans disseca é a d’Os Protocolos dos Sábios de Sião. Há mais de cem anos que esse texto é traduzido e vendido como se se tratasse das minutas das reuniões secretas ocorridas à margem do I Congresso Sionista, em Basileia, em 1897 — que aconteceu de facto —, nas quais teria sido montada uma conspiração para os judeus destruírem a ordem política e dominarem o mundo — uma invenção absoluta, sublinha Evans. Até Joseph Goebbels, fiel ministro da Propaganda de Hitler, escreveu no seu diário que “Os Protocolos dos Sábios de Sião são uma fraude”.

Mas Hitler acreditava que eram genuínos e em 1933 havia 33 edições na Alemanha. Ainda hoje se discute o peso que o texto teve na formação do anti-semitismo no governo nazi — Evans diz que foi uma influência “indirecta”. O que se sabe é que, ao longo dos últimos cem anos, os Protocolos foram publicados com novas introduções e comentários de modo a culpar os judeus pelos problemas desse momento e desse lugar, numa actualização permanente.

Pequeno senão: há cem anos que se sabe que os Protocolos são uma “falsificação grosseira” e um plágio. A primeira denúncia pública surgiu em Julho de 1921, quando o correspondente do The Times em Istambul, Philip Graves, escreveu ao seu editor em Londres: “Um russo (ortodoxo) fez aqui uma descoberta muito curiosa [...]. É que Os Protocolos dos Sábios são em larga medida o plágio de um livro [de] 1864. O livro é uma série de diálogos entre Montesquieu e Maquiavel [...]. Muitas das semelhanças são extraordinárias. [...] Os Protocolos são, em muitas partes, uma mera paráfrase. Estou a ver aqui os elementos de um furo.”

O livro de 1864 chama-se Dialogue aux enfers entre Machiavel et Montesquieu ou la politique de Machiavel au XIXe siècle e é uma sátira do advogado francês Maurice Joly sobre Napoleão III. Conta Graves que o russo que fizera a descoberta, Mikhail Raslovlev, era parente do correspondente do Times em São Petersburgo e o contactara a propor vender-lhe o livro.

Apesar de a notícia ter sido publicada em vários países e línguas em 1921 e nos anos seguintes, o texto dos Protocolos foi citado e impresso pelo Partido Nazi, que em 1933 incentivou “cada alemão a estudar a terrível confissão dos Sábios do Sião” […]

As Conspirações em Torno de Hitler fecha um círculo sobre a mentira, as fake news e o impacto da “História falsa” no debate público. Evans mergulha no estilo paranóico, de exagero intenso, desconfiança e fantasia conspiratória das teses falsas que envolvem os nazis — e quase sempre os judeus. Se acha que é um fenómeno das franjas marginais, Evans esclarece: “Apareceram mais teses da sobrevivência de Hitler em forma de livro no século XXI do que nos 55 anos anteriores.”

Segundo essa tese, o ditador nazi não se suicidou no bunker a 30 de Abril de 1945 — foi um duplo — mas fugiu de submarino para a Argentina, onde viveu até morrer, muitos anos depois, ao lado de Eva Braun, que também fugiu. Que provas há para esta teoria? Nenhuma […]

Os conspiracionistas vivem num mundo a preto e branco, de “heróis” que procuram a verdade e “vilões” que a escondem. Um mundo sem ambiguidades morais, só absolutos morais, e sem a “complexidade cinzenta” que os documentos do mundo real mostram […]

Há uma linha de pensamento que diz que é uma perda de tempo desfazer mentiras espalhadas por lunáticos. É evidente que discorda. O que o fez regressar às teorias da conspiração e investir tempo neste livro?

Escrevi uma história da Alemanha nazi em três volumes e quando estava a chegar ao fim da escrita notei que muitas teorias conspirativas sobre os nazis estavam a multiplicar-se e a aumentar na Internet e nas redes sociais. Pensava que temas como o Exército alemão ter sido “apunhalado nas costas”, o incêndio do Parlamento alemão, a viagem de Rudolf Hess até à Escócia e, acima de tudo, a morte de Hitler estavam há muito resolvidos pelos historiadores sérios, eram questões assentes, sem controvérsia.

E, no entanto, estas teorias da conspiração estavam não só a proliferar, como a entrar no universo da História séria. Vários historiadores sérios começaram a dizer coisas do tipo: “Bom, claro que a questão do ‘como’ e ‘porquê’ Hess voou para a Escócia em 1941 não está resolvida”, “não temos a certeza se Hitler esteve envolvido...”. Ou: “Se calhar o fogo de Reichstag foi iniciado pelas tropas nazis...” Isto quando sabemos há décadas que foi iniciado por uma pessoa sozinha. Pensei que era um fenómeno que valia a pena investigar. Sempre me interessei pelas fronteiras entre a verdade e a ficção […]


O livro analisa cinco grandes teorias da conspiração. Qual foi a vantagem de olhar para as cinco ao mesmo tempo?

Há dois tipos de teorias da conspiração. As que estão associadas a um acontecimento isolado, como a morte de J.F.K. [ John F. Kennedy] ou o [ataque terrorista de] 11 de Setembro [de 2001] — no caso, os acontecimentos são a fuga de Hess para a Escócia, o incêndio do Parlamento alemão e a morte de Hitler. E há as teorias da conspiração sistémicas. Por isso, peguei no caso d’Os Protocolos dos Sábios de Sião, uma falsificação anti-semita do início do século XX que diz que tudo o que acontece no mundo é o resultado de uma conspiração de judeus que querem minar a sociedade e controlar a civilização — ou seja, teorias a uma escala gigantesca. Algures entre estas duas, há teorias como a lenda do “apunhalado nas costas”, que diz que o Exército alemão não foi derrotado em 1918 no campo de batalha pelos Aliados, mas “apunhalado nas costas” pela frente interna alemã — e sobre isso há diferentes versões.

Como a de que foram os revolucionários e políticos sociais-democratas.

Sim, e diferentes teorias se aplicam a isso. Podia ter incluído a negação do Holocausto, que é uma teoria da conspiração que suprime a verdade sobre o Holocausto que, segundo os negacionistas, foi uma invenção de governos, historiadores e jornalistas para esconder a verdade — outra fantasia. Mas não incluí porque já tinha escrito sobre isso […]

O que é que estas teorias da conspiração têm em comum?

Tem que ver com o modo como são construídas, quem as constrói, como funcionam. Nas teorias da conspiração nunca há provas verdadeiras, directas, concretas e sólidas que confirmem as teses. Inventam provas e até falsificam “provas”. Nestas cinco teorias, há “provas” forjadas sobre Hess, sobre o fogo do Parlamento alemão... para não falar dos Protocolos, que são uma falsificação pura […]

Parece uma contradição: recusam a complexidade do mundo, mas também recusam a ideia de que, simplesmente, uma pessoa pode agir sozinha.

Eles recusam a ideia do acaso. Mas as circunstâncias casuais fazem parte da História. Eles recusam aceitar que Hess tenha decidido voar até à Escócia sem dizer nada a ninguém, levando uma suposta “proposta de paz da Alemanha”, que ele inventou sem consultar Hitler, e que queria entregar ao duque de Hamilton, um homem sem relevância na política britânica, mas que por acaso, como Hess, era um ás da aviação — foi uma das primeiras pessoas a voar sobre o Evereste. Isto soa a loucura total — o que era de facto. E por isso os conspiracionistas dizem que “tem de haver alguma coisa por detrás”. Os conspiracionistas não aceitam a ideia que uma pessoa sozinha pode mudar História. Acham que tudo acontece por causa de “forças malignas”. Coisas irracionais, inesperadas, surpreendentes, acasos circunstanciais são anátemas para os adeptos das teorias da conspiração. É assustador pensar que o vice-Führer da Alemanha nazi era, no mínimo, levemente desequilibrado, senão completamente louco. Hitler e Goebbels, o seu ministro da Propaganda, ficaram furiosos quando souberam do voo. O voo mostra que o homem que foi o número dois do regime durante anos era um louco! […]

Do início ao fim do seu livro, extrema-direita e anti-semitismo rimam com negadores do Holocausto, amantes das conspirações, “ciência alternativa”, esoterismo, ocultismo, fascínio pelo “paranormal” e até crentes em ovnis, uma estranha mistura de pessoas. O que une os neonazis a este mundo esotérico?

São comunidades de conhecimento alternativo, que estão a aumentar em dimensão e intensidade por causa da Internet e das redes sociais. Se uma pessoa acredita que os extraterrestres visitam a Terra e que há salsichas voadoras construídas pelos nazis e ninguém à sua volta acredita, através das redes sociais essa pessoa vai encontrar alguém que acredita no mesmo. Estas comunidades de conhecimento alternativo têm pessoas que acreditam nos ovnis, têm ocultistas que acreditam que há forças mágicas e pessoas que as usam para mudar o mundo, têm negacionistas e radicais da extrema-direita que acreditam que o Holocausto não existiu. Todas rejeitam o que dizem ser o “conhecimento oficial”, como se historiadores como eu e outros milhares fôssemos parte de um establishment dedicado a inventar conhecimento ou que foram os governos que nos deram instruções sobre o que devemos dizer, fazer e pensar — o que é bastante insultuoso.

Hitler é uma figura tão universalmente conhecida que, na nossa era secular, corporiza a ideia de Satanás. Estas comunidades de conhecimento alternativo sentem-se atraídas por isso. Ao associarem-se ao nome de Hitler sentem que ganham relevância. Mas atenção que há conspiracionistas que admiram Hitler. Isso vê-se nas teorias sobre a suposta fuga do bunker para a Argentina: um homem tão grandioso não poderia suicidar-se com um tiro na cabeça depois de envenenar a mulher […]

Desfazer estas mentiras é a nova tarefa dos historiadores?

Sim. Os historiadores são caçadores de mitos, mentiras e teorias da conspiração. Sempre tentámos usar investigação cuidadosa e fazer avaliações e juízos objectivos para desmontar mitos de todo o tipo. Mas hoje isso tornou-se mais importante. Vivemos na era da “pós-verdade”, na qual diminuiu a crença na verdade e na possibilidade de se encontrar uma verdade objectiva. Infelizmente. Em parte, é resultado da Internet, que tem estado muito descontrolada. Os gate keepers dos media — editores e produtores — foram ultrapassados pela Internet, que até há pouco tempo não ligava à questão da verdade […]

Qual é o impacto da “história falsa” na democracia?

Se não acreditamos na investigação feita de forma séria e objectiva, que estabelece os factos, como é que podemos ter políticas públicas eficazes? Vemos isso em países como o Brasil, que tem um Presidente populista, ou nos EUA, de onde continuamos a ler sobre a forma como Trump menosprezou o conhecimento dos peritos. Essa é a primeira questão: temos de acreditar na verdade e na possibilidade de descobrir a verdade. Isto faz parte da nova onda populista da política dos últimos anos, que desconfia dos peritos e desvaloriza a especialização. Para os historiadores, ver livros e programas de televisão feitos com base em fantasias paranóicas e não em investigação séria é muito perturbador e, com franqueza, insultuoso […]

Há fake news e há fake History, não sei se concorda com a expressão...

... com certeza, fake History é coisa que não falta! São igualmente prejudiciais? É difícil avaliar. Penso que as fake news e a fake History andam juntas e são igualmente prejudiciais. Ambas minam a ideia de que a verdade existe e que é possível encontrá-la. Como é que podemos saber se uma prejudica mais do que a outra? Para mim, como historiador, a fake History põe em causa tudo o que faço — se as pessoas acreditarem nas mentiras. A fake History pode criar preconceitos e é uma das grandes componentes do anti-semitismo. É com fake History que aparecem Os Protocolos dos Sábios de Sião, que dissemina o anti-semitismo.

As conspirações em torno de Hitler – [Extracto] Entrevista a Richard J. Evans - por Bárbara Reis, in P2, Público, 4 de Julho de 2021, pp 4-9 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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