As conspirações em torno de Hitler – [Extracto] Entrevista a Richard J. Evans, por Bárbara
Reis, in P2, Público
Entrevista
Richard J. Evans As Conspirações em Torno de Hitler, último livro do
historiador, fecha um círculo de investigação sobre a mentira, as fake news e o
impacto da “História falsa” na democracia. Mais do que nunca, “temos de
acreditar na verdade e na possibilidade de descobrir a verdade”
Bem-vindo ao nevoeiro de fantasias, histórias deturpadas, invenções puras e provas forjadas. O historiador Richard J. Evans, especialista mundial no estudo do Terceiro Reich, dedicou cinco anos e mobilizou dez investigadores para analisar as teorias da conspiração à volta de Adolf Hitler.
O resultado é As Conspirações em Torno de Hitler — O Terceiro Reich e a Imaginação Paranoica (Edições
70, Almedina), nas bancas desde Maio. Passo a passo, papel a papel, texto a
texto, o livro disseca cinco grandes teorias falsas repetidas há décadas e reaparecidas
agora com novo vigor, como acontece “sempre nos momentos de crise”, diz Evans,
“e nós estamos a viver uma crise”.
As cinco teses
alimentam duas coisas: uma “próspera indústria de entretenimento” e o preconceito
contra os judeus, há muito “um bode expiatório”, diz o historiador britânico em
entrevista ao PÚBLICO.
A primeira
teoria da conspiração que Evans disseca é a d’Os Protocolos dos Sábios de Sião.
Há mais de cem anos que esse texto é traduzido e vendido como se se tratasse das
minutas das reuniões secretas ocorridas à margem do I Congresso Sionista, em Basileia,
em 1897 — que aconteceu de facto —, nas quais teria sido montada uma conspiração
para os judeus destruírem a ordem política e dominarem o mundo — uma invenção
absoluta, sublinha Evans. Até Joseph Goebbels, fiel
ministro da Propaganda de Hitler, escreveu no seu diário que “Os Protocolos dos
Sábios de Sião são uma fraude”.
Mas Hitler
acreditava que eram genuínos e em 1933 havia 33 edições na Alemanha. Ainda hoje
se discute o peso que o texto teve na formação do anti-semitismo no governo nazi
— Evans diz que foi uma influência “indirecta”.
O que se sabe é que, ao longo dos últimos cem anos, os Protocolos foram publicados
com novas introduções e comentários de modo a culpar os judeus pelos problemas desse
momento e desse lugar, numa actualização permanente.
Pequeno senão:
há cem anos que se sabe que os Protocolos são uma “falsificação
grosseira” e um plágio. A primeira denúncia pública surgiu em Julho de 1921,
quando o correspondente do The Times em Istambul, Philip Graves, escreveu ao
seu editor em Londres: “Um russo (ortodoxo) fez aqui uma descoberta muito
curiosa [...]. É que Os Protocolos dos Sábios são em larga medida o plágio de
um livro [de] 1864. O livro é uma série de diálogos entre Montesquieu e Maquiavel
[...]. Muitas das semelhanças são extraordinárias. [...] Os Protocolos são, em muitas
partes, uma mera paráfrase. Estou a ver aqui os elementos de um furo.”
O livro de 1864
chama-se Dialogue aux enfers entre Machiavel et Montesquieu ou la politique de
Machiavel au XIXe siècle e é uma sátira do advogado francês Maurice Joly sobre
Napoleão III. Conta Graves que o russo que fizera
a descoberta, Mikhail Raslovlev, era parente do correspondente do Times em São
Petersburgo e o contactara a propor vender-lhe o livro.
Apesar de a
notícia ter sido publicada em vários países e línguas em 1921 e nos anos seguintes,
o texto dos Protocolos foi citado e impresso pelo Partido Nazi, que em 1933 incentivou
“cada alemão a estudar a terrível confissão dos
Sábios do Sião” […]
As Conspirações em Torno de Hitler fecha um círculo sobre a mentira, as fake news e o impacto
da “História falsa” no debate público. Evans mergulha no estilo paranóico, de
exagero intenso, desconfiança e fantasia conspiratória
das teses falsas que envolvem os nazis — e quase sempre os judeus. Se acha que
é um fenómeno das franjas marginais, Evans esclarece: “Apareceram mais teses da
sobrevivência de Hitler em forma de livro no século XXI do que nos 55 anos
anteriores.”
Segundo essa
tese, o ditador nazi não se suicidou no bunker a 30 de Abril de 1945 — foi um
duplo — mas fugiu de submarino para a Argentina, onde viveu até morrer, muitos anos
depois, ao lado de Eva Braun, que também fugiu. Que provas há para esta teoria?
Nenhuma […]
Os conspiracionistas
vivem num mundo a preto e branco, de “heróis” que procuram a verdade e “vilões”
que a escondem. Um mundo sem ambiguidades morais, só absolutos morais, e sem a
“complexidade cinzenta” que os documentos do mundo real mostram […]
Há uma linha de pensamento que diz que é
uma perda de tempo desfazer mentiras espalhadas por lunáticos. É evidente que
discorda. O que o fez regressar às teorias da conspiração e investir tempo
neste livro?
Escrevi uma
história da Alemanha nazi em três volumes e quando estava a chegar ao fim da escrita notei que muitas teorias conspirativas sobre os
nazis estavam a multiplicar-se e a aumentar na Internet e nas redes sociais.
Pensava que temas como o Exército alemão ter sido “apunhalado nas costas”, o
incêndio do Parlamento alemão, a viagem de Rudolf Hess até à Escócia e, acima de
tudo, a morte de Hitler estavam há muito resolvidos pelos historiadores sérios,
eram questões assentes, sem controvérsia.
E, no entanto,
estas teorias da conspiração estavam não só a proliferar, como a entrar no universo
da História séria. Vários historiadores sérios começaram a dizer coisas do tipo:
“Bom, claro que a questão do ‘como’ e ‘porquê’ Hess voou para a Escócia em 1941
não está resolvida”, “não temos a certeza se Hitler esteve envolvido...”. Ou:
“Se calhar o fogo de Reichstag foi iniciado pelas tropas nazis...” Isto quando
sabemos há décadas que foi iniciado por uma pessoa sozinha. Pensei que era um
fenómeno que valia a pena investigar. Sempre me interessei pelas fronteiras
entre a verdade e a ficção […]
O livro analisa cinco grandes teorias da conspiração.
Qual foi a vantagem de olhar para as cinco ao mesmo tempo?
Há dois tipos de
teorias da conspiração. As que estão associadas a um acontecimento isolado, como
a morte de J.F.K. [ John F. Kennedy] ou o [ataque terrorista de] 11 de Setembro
[de 2001] — no caso, os acontecimentos são a fuga de Hess para a Escócia, o incêndio
do Parlamento alemão e a morte de Hitler. E há as teorias da conspiração sistémicas.
Por isso, peguei no caso d’Os Protocolos dos Sábios de Sião, uma falsificação anti-semita do início do século XX que diz que tudo o
que acontece no mundo é o resultado de uma conspiração de judeus que querem
minar a sociedade e controlar a civilização — ou seja, teorias a uma escala gigantesca.
Algures entre estas duas, há teorias como a lenda do “apunhalado nas costas”,
que diz que o Exército alemão não foi derrotado em 1918 no campo de batalha
pelos Aliados, mas “apunhalado nas costas” pela frente interna alemã — e sobre
isso há diferentes versões.
Como a de que foram os revolucionários e
políticos sociais-democratas.
Sim, e diferentes
teorias se aplicam a isso. Podia ter incluído a negação do Holocausto, que é
uma teoria da conspiração que suprime a verdade sobre o Holocausto que, segundo
os negacionistas, foi uma invenção de governos, historiadores e jornalistas
para esconder a verdade — outra fantasia. Mas não incluí porque já tinha
escrito sobre isso […]
O que é que estas teorias da conspiração
têm em comum?
Tem que ver com
o modo como são construídas, quem as constrói, como funcionam. Nas teorias da
conspiração nunca há provas verdadeiras, directas, concretas e sólidas que confirmem as teses. Inventam provas e até falsificam “provas”. Nestas cinco teorias, há “provas” forjadas sobre
Hess, sobre o fogo do Parlamento alemão... para não falar dos Protocolos, que são
uma falsificação pura […]
Parece uma contradição: recusam a complexidade
do mundo, mas também recusam a ideia de que, simplesmente, uma pessoa pode agir
sozinha.
Eles recusam a
ideia do acaso. Mas as circunstâncias casuais fazem parte da História. Eles
recusam aceitar que Hess tenha decidido voar até à Escócia sem dizer nada a
ninguém, levando uma suposta “proposta de paz da Alemanha”, que ele inventou
sem consultar Hitler, e que queria entregar ao duque de Hamilton, um homem sem
relevância na política britânica, mas que por acaso, como Hess, era um ás da
aviação — foi uma das primeiras pessoas a voar sobre o Evereste. Isto soa a
loucura total — o que era de facto. E por isso os conspiracionistas dizem que
“tem de haver alguma coisa por detrás”. Os conspiracionistas não aceitam a ideia
que uma pessoa sozinha pode mudar História. Acham que tudo acontece por causa
de “forças malignas”. Coisas irracionais, inesperadas, surpreendentes, acasos circunstanciais
são anátemas para os adeptos das teorias da conspiração. É assustador pensar
que o vice-Führer da Alemanha nazi era, no mínimo, levemente desequilibrado,
senão completamente louco. Hitler e Goebbels, o seu ministro da Propaganda, ficaram furiosos quando souberam do voo. O voo mostra que o homem
que foi o número dois do regime durante anos era um louco! […]
Do início ao fim do seu livro, extrema-direita
e anti-semitismo rimam com negadores do Holocausto, amantes das conspirações,
“ciência alternativa”, esoterismo, ocultismo, fascínio pelo “paranormal” e até
crentes em ovnis, uma estranha mistura de pessoas. O que une os neonazis a este
mundo esotérico?
São comunidades
de conhecimento alternativo, que estão a aumentar em dimensão e intensidade por
causa da Internet e das redes sociais. Se uma pessoa acredita que os
extraterrestres visitam a Terra e que há salsichas voadoras construídas pelos
nazis e ninguém à sua volta acredita, através das redes sociais essa pessoa vai
encontrar alguém que acredita no mesmo. Estas comunidades de conhecimento
alternativo têm pessoas que acreditam nos ovnis, têm ocultistas que acreditam que
há forças mágicas e pessoas que as usam para mudar o mundo, têm negacionistas e
radicais da extrema-direita que acreditam que o Holocausto não existiu. Todas
rejeitam o que dizem ser o “conhecimento oficial”,
como se historiadores como eu e outros milhares fôssemos parte de um establishment
dedicado a inventar conhecimento ou que foram os governos que nos deram
instruções sobre o que devemos dizer, fazer e pensar — o que é bastante
insultuoso.
Hitler é uma figura tão universalmente conhecida que, na nossa era secular, corporiza
a ideia de Satanás. Estas comunidades de conhecimento alternativo sentem-se
atraídas por isso. Ao associarem-se ao nome de Hitler sentem que ganham
relevância. Mas atenção que há conspiracionistas que admiram Hitler. Isso vê-se
nas teorias sobre a suposta fuga do bunker para a Argentina: um homem tão grandioso
não poderia suicidar-se com um tiro na cabeça depois de envenenar a mulher […]
Desfazer estas mentiras é a nova tarefa dos
historiadores?
Sim. Os
historiadores são caçadores de mitos, mentiras e teorias da conspiração. Sempre
tentámos usar investigação cuidadosa e fazer avaliações e juízos objectivos
para desmontar mitos de todo o tipo. Mas hoje isso tornou-se mais importante.
Vivemos na era da “pós-verdade”, na qual diminuiu a crença na verdade e na
possibilidade de se encontrar uma verdade objectiva. Infelizmente. Em parte, é
resultado da Internet, que tem estado muito descontrolada. Os gate keepers dos media
— editores e produtores — foram ultrapassados pela Internet, que até há pouco
tempo não ligava à questão da verdade […]
Qual é o impacto da “história falsa” na democracia?
Se não acreditamos
na investigação feita de forma séria e objectiva, que estabelece os factos, como
é que podemos ter políticas públicas eficazes?
Vemos isso em países como o Brasil, que tem um Presidente populista, ou nos
EUA, de onde continuamos a ler sobre a forma como Trump menosprezou o
conhecimento dos peritos. Essa é a primeira questão: temos de acreditar na
verdade e na possibilidade de descobrir a verdade. Isto faz parte da nova onda
populista da política dos últimos anos, que desconfia
dos peritos e desvaloriza a especialização. Para os historiadores, ver livros e
programas de televisão feitos com base em fantasias paranóicas e não em investigação
séria é muito perturbador e, com franqueza, insultuoso […]
Há fake news e há fake History, não sei se
concorda com a expressão...
... com certeza,
fake History é coisa que não falta! São igualmente prejudiciais? É difícil
avaliar. Penso que as fake news e a fake History andam juntas e são igualmente prejudiciais.
Ambas minam a ideia de que a verdade existe e que é possível encontrá-la. Como
é que podemos saber se uma prejudica mais do que a outra? Para mim, como
historiador, a fake History põe em causa tudo o que faço — se as pessoas acreditarem
nas mentiras. A fake History pode criar preconceitos e é uma das grandes componentes
do anti-semitismo. É com fake History que aparecem Os Protocolos dos Sábios de
Sião, que dissemina o anti-semitismo.
As conspirações em torno de Hitler – [Extracto] Entrevista a Richard J. Evans - por Bárbara Reis, in P2, Público, 4 de Julho de 2021, pp 4-9 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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