Redescoberta
de Cardoso Pires – por António Valdemar, in Tempo Livre
O imaginário de Lisboa na obra de um grande escritor que se empenhou em «ridicularizar os cosmopolitismos, como sinónimo de provincianismo; sacudir os bonzos e demonstrar que a austeridade é uma capa do medo e da ausência de imaginação». Memória do passado, advertência para o presente e aviso para o futuro
José Cardoso Pires é um escritor com lugar muito próprio na literatura portuguesa do século XX. A sua obra, que parecia esquecida, voltou a ser assinalada com a reedição dos seus livros, acompanhados de prefácios de novos escritores, a publicação de novos ensaios críticos e o aparecimento de uma extensa biografia realizada por Bruno Vieira do Amaral. Ficamos a conhecer os vários aspetos da personalidade do homem rebelde e insubmisso, obcecado com a sua independência. E também o processo de criação do escritor que buscou uma «sintaxe citadina», rejeitando os modelos de uma linguagem nostálgica e sofisticada.
O tema central dos livros de José Cardoso Pires (1925-1998) desenvolveu-se em redor dos mais diversos cenários geográficos e humanos de Lisboa, apesar de ser oriundo de São João do Peso, concelho de Vila de Rei, distrito de Castelo Branco. Explicava, sem rodeios, que nascera ali por mero acaso, pois os pais já se tinham fixado em Lisboa. Guardou a reminiscência da aldeia longínqua da Beira Baixa. A formação de José Cardoso Pires decorreu na Escola Primária de Arroios, no Liceu Camões, na Faculdade de Ciências e na Escola Naval para fazer o curso da Marinha Mercante. Tempo marcado pelo fim da Guerra de Espanha e a Segunda Guerra Mundial. Nos anos 40, despertou para a literatura. Fez parte de tertúlias famosas e que já desapareceram: o Café Hermínios, na Almirante Reis, ponto de encontro inicial dos participantes na aventura surrealista; o Café Chiado, um dos lugares dos frequentadores das livrarias Bertrand e Sá da Costa; e o Café Portugal, no Rossio, onde se reuniam os neorrealistas.
Foi a época do MUNAF e do MUD e das Exposições Gerais de Artes Plásticas, encerradas pela PIDE, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Marcou o final da década de 50 a candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Os anos 60 ganharam contornos políticos escaldantes: a guerra colonial em três frentes de combate; a reabertura do Tarrafal, pelo ministro Adriano Moreira; o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, pelo ministro Galvão Teles. Literatura e política estão associadas na criação literária de José Cardoso Pires. Ao definir a sua regra de conduta afirmou que tinha por objetivo: «ridicularizar os cosmopolitismos, como sinónimo de provincianismo; sacudir os bonzos e demonstrar que a austeridade é uma capa do medo e da ausência de imaginação».
Num dos seus principais livros Dinossauro Excelentíssimo disseca o crepúsculo de Salazar e o equívoco da «primavera política» de Marcelo Caetano. Desvenda os labirintos de um País onde tudo se decidia no Terreiro do Paço, nos vários ministérios submetidos ao poder absoluto e discricionário. A pretexto do crime do Guincho, José Cardoso Pires, na Balada da Praia dos Cães, reconstituiu como era Lisboa e como era Portugal. O capitão Almeida Santos foi executado, a 16 de março de 1960, na vivenda Verde Pino, em Rio de Mouro, pelos companheiros que fugiram, com ele, do Forte de Elvas: o médico Jean Jacques Marques Valente, o cabo António Gil e Maria José Maldonado [Sequeira]. Ao conceber uma ficção, a partir de factos reais, Elias Santana – um nome e uma criação do escritor – desencadeia a condução da narrativa no quotidiano de Lisboa: as malhas da clandestinidade política, o espectro da traição, os ódios declarados e reprimidos, os impulsos do sexo, a ansiedade do isolamento, o conflito aberto entre duas polícias, a Judiciária e a PIDE, sempre com uma a tentar sobrepor-se à outra.
Outro romance de José Cardoso Pires, O Delfim – considerado a sua obra-prima – apresenta-nos uma série de metáforas (a lagoa, a caçada aos patos, por exemplo) não apenas dos anos 60, do auge da guerra colonial e do fim de Salazar, mas da realidade portuguesa, dos seus mitos e dos seus fantasmas. Tomaz da Palma Bravo, última abencerragem de uma dinastia de aristocratas, agarrado a usos e costumes senhoriais em extinção, pertence a um grupo que, nos anos 40 e 50, lançava o pânico, nas cenas de pugilato e violência das noites de Lisboa.
Quantos outros cenários, na Cartilha do Marialva, se multiplicam aproximando-nos da Lisboa boémia e maldita? José Cardoso Pires conheceu os marginais do Socorro, do Martim Moniz, do Bairro Alto, do Cais do Sodré e do Parque Mayer. Viu e ouviu os chulos, as prostitutas e os marialvas nos seus ambientes castiços. O vocabulário que uns e outros usavam entrou na sua escrita concisa, depurada, reduzida ao essencial.
As crónicas de José Cardoso Pires reunidas no Livro de Bordo retomam o itinerário do escritor, através das ruas, das tascas e dos cabarés que resistiram, ainda, aos primeiros anos da revolução. Do 25 de Abril que celebrou com entusiasmo e, durante mais de duas décadas, viveu e escreveu em liberdade. Dificilmente se ausentava de Lisboa, da sua casa em Alvalade e do círculo dos amigos. Também se refugiava na Costa de Caparica. O isolamento junto do mar estimulava-lhe a concentração, o exercício da escrita, a escolha das palavras, num exigente trabalho de seleção e elaboração da linguagem. Para escrever o que tinha apenas de dizer.
Aproxima-se o centenário do nascimento de José Cardoso
Pires que decorrerá a 2 de
outubro de 2025, com as comemorações nacionais devidas a uma das maiores figuras
da literatura portuguesa do século XX. Tem um estatuto europeu e universalista e
a dimensão do escritor que merecia a consagração do Prémio Nobel. Legou, sem
qualquer margem para dúvidas, um dos mais notáveis patrimónios culturais da
língua portuguesa.
Redescoberta
de Cardoso Pires – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da
Classe de Letras da Academia das Ciências], in Tempo Livre, Novembro/Dezembro
de 2021, p.7 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário