segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013)


“Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
È um arco-iris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol”

[ARR, in A Palavra e o Lugar]

ANTÓNIO RAMOS ROSA nasce em Faro a 17 de Outubro de 1924. Fez estudos secundários, não concluindo “por questões de saúde”, e trabalha [cf. A.R.R, A Palavra e o Lugar, 1977] como empregado comercial, explicador e tradutor [traduzindo Éluard, Brecht; Pasternak, Camus, Hervé Bazin, Richard Bach, Sanguinetti, André Gide], Marguerite Yourcenar, ...]. Reside em 1945 em Lisboa, exercendo a profissão de empregado comercial, mas regressa cedo á sua terra de origem, só se radicando definitivamente na capital a partir de 1962.

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projeta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
E vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
Que canta num mar musical o sangue das vogais” [in Acordes]

Publica (em 1958) no jornal “A Voz de Loulé” o seu poema “Os dias, sem matéria” e no mesmo ano deu inicio á sua vasta obra poética [ver AQUI] com o livro “O Grito Claro” [editado em Faro, em 1958]. Um ano antes, Adolfo Casais Monteiro faz referência [no jornal do Brasil – ACM estava exilado] à “profunda autenticidade” poética de Ramos Rosa, que aliás situa na síntese entre o surrealismo e neo-realismo [e que os Cadernos de Poesia são disso exemplo – sobre este curioso assunto ver Ana Paula Coutinho Mendes, “Poesia do Séc. XX com António Ramos Rosa ao fundo”, 2005]

 
Poeta, ensaísta e crítico literário, colabora em inúmeros periódicos [Diário de Lisboa, Diário popular, capital, O Comércio do Porto, Diário de Noticiais, Diário de Coimbra, Artes e Letras] e publicações variadas. Co-dirige as revistas literárias Árvore (1952-54), Cassiopeia (1956), Cadernos do Meio-Dia (1958-1960). Colabora na revista Seara Nova, Vértice, “O Tempo e o Modo”, Ler, Colóquio Letras, Raiz e Utopia, Silex. Está traduzido em diversas antologias no estrangeiro [ler mais AQUI]

António Ramos Rosa militou no MUD juvenil (1945), ainda em Faro [tendo como companheiros, no grupo do Algarve, Raul Martins Veríssimo e Manuel Madeira], tendo sido preso pela Ditadura [ler mais AQUI]

No nosso tempo havia cegos e surdos que falavam
e nos queria cegar e ensurdecer.
Mas nós mantínhamos nos pulsos a tensão vertical
de um fogo verde de um outra vida.
Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes.
Escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos
em revoadas que se confundiam com as aves.
Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos,
saudando o sol de um novo dia
e às vezes a polícia surpreendia-nos
com as metralhadoras aperradas contra nós.
Devorávamos os livros proibidos apaixonadamente
reunidos em exíguos quartos ou solitariamente.

Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como um deus
porque a verdade estava na sua oposição
à tirania que nos roubava o sol,
à liberdade e à justiça da palavra viva.
Vivemos duramente com obstinada paixão
mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra
e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta.
Vencemos finalmente mas a madrugada da nossa liberdade
foi apenas um momento. O que se seguiu depois
é um sistema que não sabemos combater
porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa
que nos impede a defrontação
com os seus disfarces e os seus estratagemas.

Diz-me meu querido Manuel, os nossos sonhos diluíram-se apagaram-se
ou resta ainda um tronco verde com duas ou três folhas
e a nossa sede não morreu, ela é a nascente viva
tal como eu te procurava para partilhar o meu fogo ansioso
entre as anelantes aranhas da minha angústia obscura?
Será que resta uma centelha insubmissa
desse lume fascinante que nos deslumbrava como se fôssemos náufragos
que procuravam um madeiro ou uma giesta incendiada
para que sentíssemos que a vida era a vida com o seu horizonte azul?”

[António Ramos Rosa, in Manuel Madeira, No Encalço do Real Inalcançável, Editorial Minerva, 2004 - ler AQUI]
 
J.M.M.

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