sexta-feira, 6 de junho de 2014

HENRIQUE GALVÃO - MINHA CRUZADA PRÓ-PORTUGAL. SANTA MARIA

 
 
Henrique Galvão, "A Minha Cruzada Pró-Portugal. Santa Maria" [ed. fac-similada], Livraria Martins, São Paulo, 1961, p. 201.
 
Trata-se do volume nº 9, da colecção “Livros Proibidos do Estado Novo” (do jornal PÚBLICO), em versão facsimile, que vem acompanhado do respectivo relatório oficial da censura. O livro, de imediato proibido de circular “conta a história do sequestro do luxuoso paquete Santa Maria, pelo Capitão Galvão, o próprio autor, a 23 de Janeiro de 1961. O objectivo era chamar a atenção do mundo para a longa ditadura portuguesa e denunciar o regime ditatorial franquista de Espanha" [ler AQUI]
 
Sobre a obra, publicada inicialmente no Brasil (1961) e posteriormente editada em Portugal com o título “Assalto ao Santa Maria” (Edição Delfos, 4 de Julho de 1973), transcrevemos o artigo publicado no mesmo jornal, por Álvaro de Matos, coordenador da Hemeroteca Municipal de Lisboa [onde tem desempenhado um elevado trabalho de serviço público, que todos lhe reconhecem] e Investigador Centro de Investigação Media e Jornalismo.
 
«A primeira “libertação de uma parcela do território nacional”…», jornal PÚBLICO, 4 de Junho de 2014, p. 47 – por Álvaro de Matos (sublinhados nossos)
 
“Na ressaca do assalto ao Santa Maria, e aproveitando o seu impacto mediático, Henrique Galvão (HG) publica no Brasil, em 1961, Minha Cruzada Pró-Portugal. Uns anos mais tarde, em 1973, já depois da morte do autor, o livro sai em terras lusas, com outro título, O Assalto à “Santa Maria”, com a chancela da Delfos. A obra conta a história da “Operação Dulcineia”, nome pelo qual ficou conhecido o plano de sequestro do luxuoso paquete transatlântico português Santa Maria, orquestrada pelo próprio autor. Por sua vez, “a acção deveria servir de rastilho a um levantamento popular que, no caso português, poderia ser iniciado, segundo HG, em qualquer ponto vulnerável do Império, onde começavam a surgir então os primeiros fermentos de rebelião nacionalista contra a “política colonial tirânica de Salazar” (Barreto, 1999).
 

 
Através do choque provocado na opinião pública internacional, HG, com um grupo de exilados políticos espanhóis liderados pelo Capitão Sotomayor, pretendia chamar a atenção das democracias ocidentais para a situação política ibérica. Mas O Assalto ao “Santa Maria” não se fica pelo registo dessa acção verdadeiramente quimérica que, apesar de não ter atingido os seus fins, constituiu um duro golpe na credibilidade do Estado Novo, mostrando o seu crescente isolamento internacional. O livro incorpora também um dos mais violentos ataques políticos feitos ao regime e ao carácter de Salazar.
 
Aquilo que HG classifica como “cenário político e moral” que, no seu entender, justificava a tomada do Santa Maria. Esta devia ser vista como “um propósito político e bem claro de rebelião”, e não como um acto de pirataria, como pretendeu o regime. Salazar é pois descrito como um homem “devoto, mas não genuinamente religioso”, fabricador de “uma falsa personalidade”, que lhe serviu “de disfarce para ocultar a verdadeira, que era incapaz de actos democráticos”; portanto, um “impostor habilidoso”, que centralizou “nas suas próprias mãos todos os instrumentos de poder arbitrário e irresponsável”; que chegou ao poder reduzindo a população “a uma obediência de rebanho” e perseguindo “toda a oposição”; criou, assim, um “Estado totalitário”, assente num “único partido político”, numa polícia política “copiada da Gestapo”, na “censura prévia aplicada a todas as manifestações de pensamento político ou vida intelectual”, e noutros pilares conhecidos.
 
Segue-se a desconstrução veemente dos “reais feitos” de Salazar que, na realidade, para HG, traduziam-se antes na “degradação do povo português” (sujeito “à miséria moral dos povos párias dos países totalitários”), na corrupção generalizada da sua administração (“No actual Portugal de Salazar, tudo é comprado e vendido”), na transfiguração do exército numa “guarda pretoriana servil” (logo, inútil para a defesa nacional), na existência de um governo medíocre (responsável pela “miséria de mais de 80% da população portuguesa nos aspectos vitais da sua existência como seres humanos”), numa educação plasmada num “imbróglio mental e organizacional” e, por fim, numa justiça que não primava pela independência, transformada no “negócio mais monstruoso” do país.
 
O retrato era arrasador, feito por um homem que tinha desempenhado um papel importante no 28 de Maio, como militar, e no regime, como funcionário colonial e deputado por Angola, mas que rompera com o Estado Novo no final dos anos 40 devido às suas críticas às condições da colonização angolana (Março de 1949).
 
 
 
 
Sem surpresa, a circulação do livro foi proibida. O editor ainda amenizou “certas expressões mais incisivas do autor”, exercício que não influiu na apreciação do censor:
 
Na primeira parte deste livro faz-se um relato da história política do regime. A segunda parte é o relato da operação. Em ambas se insulta fortemente o governo, as instituições em geral, muitas pessoas, etc.
 
E acrescentava, antes de concluir pela apreensão provisória do livro:
 
Entre outros, há aqui ofensas à magistratura, às forças armadas e à administração em geral que é acusada de corrupção. Além disso, o livro, tal como está escrito, parece constituir um forte incitamento à violência política”.
 
A sentença é bastante expressiva do que era a censura nesta altura, muito preocupada com as críticas que mais pudessem afectar a segurança e o prestígio do regime, ou as suas principais figuras políticas, de que os temas abordados por HG eram caso sintomático. Daí a reacção repressiva, a priori, no caso da imprensa escrita, e a posteriori, no caso dos livros, mas articulada com outra vertente não raras vezes esquecida da acção da censura: a tentativa, que vinha de trás, de formação de um bloco de opinião nacional favorável ao Estado Novo, incompatível com a “Cruzada Pró Portugal” do nosso autor. Mas 6 meses depois, com o 25 de Abril de 1974, o objectivo último da aventura do rebaptizado Santa Liberdade era concretizado: “o desmoronamento do regime salazariano”.
 
[Álvaro Costa de Matosin «A primeira “libertação de uma parcela do território nacional”…», jornal PÚBLICO, 4 de Junho de 2014, p. 47
 
J.M.M.

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