domingo, 8 de fevereiro de 2015

BIBLIOTECA DE RAMIRO TEIXEIRA – LEILÃO [PARTE II]


LEILÃO DA BIBLIOTECA DE RAMIRO TEIXEIRA [CONTINUAÇÃO]


“Aqui chegado abro um parêntese.

Conheci Manuel Ferreira, porque é dele que agora vou falar, como participante de um grupo coral nos meados dos anos 60 ou 70 do século passado, sem a consciência de já o conhecer de período anterior, através de trocas e baldrocas de livros policiais na estreitíssima travessa de Cedofeita, na Casa Brique, porventura mais conhecida por "Casa Azul", onde seu pai possuía uma casa de antiguidades.

Homem em idade recém-chegado a tal, Manuel Ferreira demonstrou tais qua1idades no negócio dos livros que comprava e revendia depois de os ler, tal como os demais que vinham no arrasto das compras de mobiliário e demais recheio que o pai adquiria, que este, certo dia, o conduziu a um estabelecimento encerrado na rua Formosa e o desafiou: Acho que é altura de começares a desenvolver o teu próprio negócio... Se te agrada o local, vamos tratar do aluguer...

Com cerca de trinta anos, casado e já com dois filhos, Manuel Ferreira não hesitou: assim nasceu o livreiro-alfarrabista Manuel Ferreira no mês de Abril do ano de 1959.

Na pré-abertura do estabelecimento, uma porta e uma montra na rua Formosa, há quem o afirme, foi depositado o bebé Herculano [Ferreira], então com onze meses, enquanto seus pais procediam ao arrumo das obras pelas prateleiras instaladas! Não consta que alguém o tenha pretendido adquirir, apesar de alguns transeuntes se quedarem de forma enternecida na observação do seu sono inocente ou do seu gestual traquina numa alcofa...

Pouco tempo depois, Manuel Ferreira dava a conhecer as obras de mérito de que dispunha através de listas tiradas a stencil. Catálogo propriamente dito iniciou-os só em 1967 e os manteve até ao seu passamento (15/712010), num total de 89, hoje fonte documental de preciosos verbetes sobre a literatura portuguesa, ao que teremos de acrescentar os demais que organizou para leilão sob a sua própria chancela ou sob o signo da "In-Libris", hoje sob os cuidados dos seu filho mais novo, Paulo Ferreira.

Antes, porém, a partir de 1963 e até 1998, em consequência do convite que lhe foi dirigido pela filial da agência de leilões de Soares & Mendonça para organizar os seus catálogos, elaborou Manuel Ferreira mais de 60, sendo, aliás, neste período que me iniciei como imberbe bibliófilo, ainda que já viciado e compulsivo.

Esta agência, que deixou marcas indeléveis no burgo portuense, veio a encerrar as suas instalações no Porto muito provavelmente em consequência da morte do Sr. Albertino, um pregoeiro espantoso, num estúpido acidente de viação em Coimbra.

Pioneiro na promoção dos chamados "modernistas", dos homens de "Orpheu" aos da "Presença" e surrealistas, passando pelos neo-realístas do "Novo Cancioneiro" e da colecção dos "Novos Prosadores", enquanto promotor de venda das suas obras primeiras, Manuel Ferreira, desde logo, quis seguramente marcar a diferença relativamente aos seus colegas de actividade.

No mais, quero crer, valeu-lhe a escola que os leilões de Soares & Mendonça lhe proporcionaram pelo desafio que implicavam.

Pelas suas mãos, por conta própria ou de outrem, passaram as maiores bibliotecas deste país, toda a espécie de obras literárias e científicas, desde os quinhentistas aos contemporâneos, obrigando-o, passe a expressão, que nem por isso será menos verdadeira, a incomensuráveis consultas e pesquisas, chegando mesmo a rectificar informes falaciosos dados como incontornáveis! Com tais conhecimentos, Manuel Ferreira bem poderia ter escolhido para tema do seu labor livreiro a divisa dos nossos descobridores quinhentistas que asseguravam que a experiência era a madre das cousas ...

Manuel Ferreira viveu 58 anos a organizar leilões, a comprar e a vender livros, nesta cidade do Porto que não o mereceu, já que a autarquia ficou indiferente ao cinquentenário do seu estabelecimento (2009), como se tal efeméride fosse coisa corriqueira e de nenhum interesse para o burgo. Tal qual como o foi relativamente ao centenário da Liv. Académica, agora do meu Amigo Nuno Canavez, cujo trajecto existencial memorizei na obra que o tem por referência, "Nuno Canavez. As palavras da amizade" (Porto, Calendário das Letras, 2008) e onde, ainda hoje, a tenho como espaço especial de tertúlia, de conversas a propósito e a despropósito, com outros clientes ocasionais.

A ver se me faço entender: não estou aqui a defender uma actividade cultural pela razão de o ser, e que muito justamente motivou que os intérpretes acima referidos fossem agraciados com o título de Comendador, mas tão simples mente qualquer outra actividade comercial alicerçada em 50 e 10O de existência.

Há muito já que a autarquia deveria ter um gabinete ou um serviço atento às datas mais significativas para os seus comerciantes, industriais e demais personalidades públicas e intelectuais, de forma a ser ela, em primeira mão, a promover e a associar-se a este tipo de eventos. Porque não é todos os dias que se assinalam 50, 75 ou 10O de actividade cultural, comercial ou industrial.

É preciso que se crie a consciência de que uma empresa com esta longevidade, se calhar hoje mais do que nunca, adquire o direito de ser considerada um património da urbe e como tal ser reverenciada (…)

Segundo o dogma aceite, bibliófilo é aquele que ama os livros. Pois se os ama não só vive uma paixão avassaladora na maioria dos casos, como à força tem com eles uma relação sensual. A relação do bibliófilo com o livro, coisa feita de mil vagares e de mil saberes, aquém e além Gutenberg, que tão só o democratizou, não advém somente do que há lá dentro, o que narra, documenta, historia, inventaria ou ensina: é também, não poucas vezes, papel, tinta, caracteres tipográficos, capa, encadernação, ferros de gravar, dimensão, peso, etc., tudo contribuindo para o exercício de, entre outros pecados, satisfazer o do manuseio sensual, folha por folha, em quase acto onanista, fonte subtilíssima de prazer, ao qual adiciono o outro prazer que advém da descoberta e da necessidade da obra. E como entretanto ao longo da minha existência enquanto escritor, ensaísta, e comentador de obras de terceiros, muitas foram as necessidades que tinha de determinadas obras afins ao que trabalhava ou tinha em agenda de vir a trabalhar, a breve trecho dei por mim como um encarcerador de livros, distribuídos por duas residências, empacotados, encaixotados em grande número nas garagens e sótãos! E conquanto de todos tivesse pormenorizado registo e localização, inclusive o assento da sua valorização cronológica que retirava dos catálogos que recebia, a verdade é que a situação tornava-se insustentável pela dispersão e pela impossibilidade muitas vezes de deles me socorrer quando precisava.

Por outro lado o cabo do fim da vida foi-se aproximando. Que fazer da minha biblioteca? Decerto que os filhos ficarão na posse de alguns, não mais, porém, do que meia dúzia, dado que não só têm outros interesses na vida como as suas habitações não podem albergar o que possuo. Ou seja, ela não me vai sobreviver.

Custa? Claro que sim! A gente agarra-se a alguma coisa na pretensão de reter o tempo e a formação que nos deu o ser, enfim, a vida nossa que está inscrita nas páginas destas obras, de forma impressa e não poucas vezes manuscrita, como é o caso das dedicatórias dos autores em muitos dos exemplares que possuo, algumas delas reciprocamente avalizadoras, inter pares em admiração comum, mensagens de vida e de apreço que sabem a sonho e alimentam a fome sagrada dos que as têm por fundamentais. A maior parte delas têm-me como endereço, mas há muitas outras alheias, dirigidas a gente bem mais importante do que eu e que acabaram na mesma dispersão. Algumas das que me foram dirigidas provocam-me agora pesadelos, nomeadamente uma de Natália Correia, que exarou no exemplar que lhe apresentei para o efeito não me perdoar ter uma obra que ela não possuía e que há muito tempo perseguia!

E eu que não lhe a ofereci! Que mesquinho fui!

Chegou pois o tempo de decidir em consciência, escudando-me com o facto de estar a proceder de acordo com o destino de todas as grandes e pequenas bibliotecas que antecederam a minha.

Custa? Claro que sim! (…)"

Ramiro Teixeira, Excerto do “Prefácio” ao Catálogo do “Leilão daBiblioteca de Ramiro Teixeira”, Livraria Manuel Ferreira, Porto, 2015, Vol I

CATÁLOGO ONLINE AQUI [Vol I e Vol II]

J.M.M.

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