► “Morreu ontem [sábado]
Manuel de Lucena, no dia em que fazia 77 anos. É difícil dizer quem foi e o que
nos lega. O seu percurso tem muitas estações. Foi um pensador original e
heterodoxo, um espírito livre e criativo, um contador de histórias, um apaixonado
tradutor, um militante de muitas causas e viragens — um homem do seu tempo. Era
investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS)
desde 1975.
Cientista político, mudou
radicalmente o modo de olhar o Estado Novo com o seu primeiro livro — A
evolução do sistema corporativo português. Vol. I: o Salazarismo; vol. II: o
Marcelismo — uma tese escrita no exílio e publicada em Portugal em
1976.
Numa entrevista ao PÚBLICO,
em 2013, fez um irónico auto-retrato: “Eu acho que só há uma coisa que eu faço
mesmo bem: é traduzir. (…) E dificilmente me penso como outra coisa qualquer.
Não sou estúpido, de vez em quando penso umas coisas que não são mal pensadas,
mas não tenho um pensamento vasto e universal capaz de acolher os principais
aspectos da nossa querida existência.”
A questão é que são
muitíssimas essas “coisas não mal pensadas”.
Manuel João Maya de Lucena
nasceu em Angola em 1938. Aí fez a instrução primária. Frequentou o liceu em
Lisboa e depois um colégio de Jesuítas. Entrou na Universidade através do
Instituto Superior Técnico, que logo trocou pela Faculdade de Direito. De raiz
católica e monárquica, militou na JUC. O primeiro círculo de amigos é de
católicos “empenhados”: Carlos Portas, Manuel Belchior, João Vieira de Castro,
Francisco Sarsfield Cabral, Paulo Rocha. No CCC (cineclube católico) fez
outros, como João Bénard da Costa, Nuno de Bragança ou Pedro Tamen — que
voltará a acompanhar na revista O Tempo e o Modo, fundada em 1963
por António Alçada Baptista.
Lucena já tinha feito a
ruptura com o salazarismo quando eclode a greve académica de 1962. É a
oportunidade de uma “estreia literária”: é ele quem redige a quase totalidade
dos comunicados da greve. Acompanha os seus amigos dirigentes das RIA (reuniões
inter-associações) — Jorge Sampaio, Eurico Figueiredo, Medeiros Ferreira,
Victor Wengorovius ou António Ribeiro. Depressa se inicia na arte da política:
tinha uma forma peculiar de combinar o rigor dos princípios com o gosto da
manobra táctica.
Segue-se a época da
radicalização. “Esquerdizei abundantemente”, disse na mesma entrevista. Em
1963, deserta e parte para o exílio em Roma, com sua primeira mulher, Laura
Larcher Graça. É dirigente do Movimento de Acção Revolucionária (MAR)
[NOTA: a organização é fundado em Genebra, (Março ?) Dezembro de 1963, e manteve-se activa até pelo menos 1965; publicou um boletim com o título "Acção Revolucionária"; foram membros do MAR, além de Manuel Lucena, A. H. de Oliveira Marques, António Lopes Cardoso, Armando Trigo de Abreu, Bénard da Costa, João Cravinho, Jorge Sampaio, José Hipólito dos Santos, Manuel Sertório, Medeiros Ferreira, Nuno Bragança, Nuno Brederode Santos, Piteira Santos (?), Rui Cabeçadas, Vasco Pulido Valente, Vítor Wengorovius]
e, em
Argel, fará parte da Frente Patriótica de Libertação Nacional. Terá uma breve
colaboração com a LUAR. Em 1970, participa com António Barreto, Eurico
Figueiredo, Carlos Almeida e Medeiros Ferreira na fundação da revista Polémica,
publicada em Genebra. Passado da Itália para Paris, estuda no Institut de
Sciences Sociales du Travail onde faz a tese sobre o corporativismo.
Neste percurso há uma
constante: nunca foi atraído pelo Partido Comunista.
O revolucionário Lucena muda de agulha. Chega no Verão de 1974. Depressa diz aos amigos de que não gosta do que vê. Conclui o serviço militar em Cabo Verde, participando no processo de descolonização. É outro momento de viragem. Apoia o manifesto do Grupo dos 9, de Melo Antunes. Adere depois à Aliança Democrática, de Sá Carneiro, e faz a campanha do seu candidato presidencial, general Soares Carneiro. Já nas presidenciais de 1996 apoiará Jorge Sampaio contra Cavaco Silva.
No livro de homenagem que lhe
foi dedicado em 2013 — Estado, Regime e Revoluções, Estudos de
Homenagem a Manuel de Lucena — os organizadores (Carlos Gaspar, Fátima
Patriarca e Luís Salgado de Matos) resumem a lógica deste segundo percurso:
“A
acção política de Manuel de Lucena tem sido sobretudo escrita, cultivando em
regra uma independência política e intelectual que o levou a tomar posição,
como comentador, contra os perigos da escalada comunista, o caos da
descolonização e os obstáculos à institucionalização de uma democracia
pluralista. Nos anos 70 do século XX, antes e depois do 25 de Abril, escreveu
artigos ainda inspirados por um socialismo radical; mas, ao longo das duas
décadas seguintes, procurou, nomeadamente, nos jornais dirigidos por Víctor da
Cunha Rego – o Diário de Notícias, a Tarde e
o Semanário –, definir uma linha singular, tão radical na
defesa da transição para essa democracia pluralista, como inteligente na
procura dos argumentos que podem pesar na balança ideológica a favor da
liberdade.”
O seu trabalho académico
manteve o eixo de sempre: corporativismos, fascismos, totalitarismos, o
processo revolucionário português, a descolonização ou a Constituição de 1976.
No Dicionário de História de Portugal (coordenado por António
Barreto e Maria Filomena Mónica) assina entradas sobre Salazar e as principais
figuras do Estado Novo. Publica em 2006 o seu último livro: Contradanças:
política e arredores.
Um dos seus grandes projectos
foi a realização de entrevistas exaustivas a cerca de 50 actores da
descolonização, de todas as áreas e correntes, civis e militares. Coordenou,
com investigadores e jornalistas, esse trabalho entre 1995 e 1998. O resultado
— 1500 páginas — pode ser consultado: está disponível no site do ICS.
Cultor de um português inconfundível, adorava traduzir. Diz na introdução à sua
tradução das Moradas, publicada em 1989:
“Ao escrever as Moradas,
Santa Teresa de Ávila tentou traduzir Deus, trazendo-o, na medida do possível,
para o alcance das suas irmãs e filhas, as carmelitas descalças. Pela minha
parte, acabo agora de traduzir essa tradução. O objecto do seu labor, na medida
em que de objecto seja lícito falar, foi a própria divindade ou o que dela
directamente experimentou. O do meu, palavras.”
Puro Lucena. Por entre as
muitas viagens e viragens, de 1962 a 2015, soube permanecer sempre o mesmo
homem — o inconfundível Manuel de Lucena. Académico, passou sempre ao lado das
honrarias e do carreirismo”.
Jorge Almeida Fernandes, in jornal “Público”, 8 de Fevereiro de 2015,
p. 15 [sublinhados e notas nossas]
J.M.M.
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