“Naturalismo, Democracia eAborto” – por Francisco Teixeira, in jornal Público
“Onde
o homem falta, a natureza é estéril” [William Blake, A
União do Céu e do Inferno]
“Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE Business School
em Portugal, uma escola de negócios do Opus Dei, iniciativa da Associação
de Estudos Superiores de Empresa, uma ramificação de escolas de negócios do
Opus Dei em todo o mundo, acha, logo à partida de um seu texto aqui no PÚBLICO (logo no seu
título, a 25 de maio), que “A natureza é sábia, a democracia é limitada”. O
título do seu texto é todo um programa. Mas convém esclarecê-lo.
Na democracia a hierarquia é limitada e rotativa, quando não
simplesmente eliminada. Sendo humana, porque se eleva acima do que é natural, a
democracia depende de uma opção ética: a opção pela igualdade de direitos entre
todos os humanos, independentemente das suas condições naturais e de herança.
Pobres ou ricos, inteligentes ou néscios, preguiçosos ou esforçados, virtuosos
ou maldosos, na democracia todos têm os mesmos direitos. Alguns desses direitos
podem ser temporariamente revogados pelos tribunais em nome da salvaguarda da
democracia em geral. Mas a regra é clara: em democracia somos todos iguais,
tenhamos ou não sido bafejados pelos favores da natureza ou do divino. Nesse
sentido, a democracia é profundamente espiritualista. É algo que se eleva acima
da natureza mas que se recusa à transcendência, é uma invenção humana que
recusa que o Homem possa ser apenas uma emergência natural do seu corpo, mas
também a rarefação mágica de um anjo. A limitação democrática, o seu destino de
igualdade e fraqueza, é afim da kénosis divina: a renúncia de deus à sua
soberania, fazendo-se humano, Jesus de Nazaré. Sendo fraca, a democracia é a
mais poderosa das religiões, a mais cristã.
Dizendo a coisa claramente, a democracia rejeita qualquer tipo
de reducionismo naturalista, justamente porque acha que a natureza, o
pré-humano, nada tem de sábio senão a evolução cega (o que claro, é tudo menos
pouca coisa). Pelo contrário do naturalismo, procurando o desmedido, a
democracia é de uma profunda sageza, porque sabe que o homem é mais que terra e
cinza, quiçá talvez capaz de “curtocircuitar” a própria evolução natural de
onde provimos, desejando abrir-lhe os olhos dando-lhe um sentido. Pelo menos o
sentido de uma evolução democrática, da descriminação do bem e do mal, do justo
e do injusto, ainda que temporariamente, ainda que numa escala eventualmente
irrelevante, se temporal e cosmicamente referida. Mas um sentido mínimo sempre
é melhor que sentido nenhum.
O Senhor Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE Business
School em Portugal, uma escola de negócios do Opus Dei, acha, porém, que a
democracia produz resultados de sensibilidade e moral inferiores à natureza e
aos notáveis instintos animais não humanos (particularmente dos gatos, que em
criança se dedicava a torturar: “Quando miúdo divertia-me a metê-los em barris
de água da chuva para os ver saltar como uma mola e fugir como uma seta”) e que
nessa animalidade deveríamos procurar as orientações éticas humanas, em
especial no caso do aborto, que, num arremedo de loucura ética, considera
equivalente a “aterrorizar e liquidar vidas inocentes aos milhões”.
O que sempre me espanta neste tipo de perigosos fundamentalistas
religiosos, como o Senhor Eugénio Viassa Monteiro, é aquilo que de há muito se
conhece como reducionismo naturalista. É, no fundo, que em nome de uma ideia de
Deus, e de uma crença determinada, se portem como ateus e materialistas
ridículos, reduzindo o humano ao instintivo, ao genético, à pura matéria de pó
e miséria, a uma ocasionalidade química e física. O que me espanta, pois, é
como um religioso pode transformar-se, e tão facilmente, como disse o Pastor James Anderson
no século XVIII, num “ateu estúpido”, mesmo e sobretudo usando cilício e
mortificações a horas certas. Mil vezes, vezes mil o ateísmo normal.
Naturalismo, Democracia e Aborto – por Francisco Teixeira [professor
do Ensino Secundário], jornal Público, 27 de Maio de 2015, p.46-47 – com
sublinhados nossos.
J.M.M.
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