quarta-feira, 27 de maio de 2015

NATURALISMO, DEMOCRACIA E ABORTO


Naturalismo, Democracia eAborto” – por Francisco Teixeira, in jornal Público

“Onde o homem falta, a natureza é estéril” [William Blake, A União do Céu e do Inferno]

Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE Business School em Portugal, uma escola de negócios do Opus Dei, iniciativa da Associação de Estudos Superiores de Empresa, uma ramificação de escolas de negócios do Opus Dei em todo o mundo, acha, logo à partida de um seu texto aqui no PÚBLICO (logo no seu título, a 25 de maio), que “A natureza é sábia, a democracia é limitada”. O título do seu texto é todo um programa. Mas convém esclarecê-lo.

Na democracia a hierarquia é limitada e rotativa, quando não simplesmente eliminada. Sendo humana, porque se eleva acima do que é natural, a democracia depende de uma opção ética: a opção pela igualdade de direitos entre todos os humanos, independentemente das suas condições naturais e de herança. Pobres ou ricos, inteligentes ou néscios, preguiçosos ou esforçados, virtuosos ou maldosos, na democracia todos têm os mesmos direitos. Alguns desses direitos podem ser temporariamente revogados pelos tribunais em nome da salvaguarda da democracia em geral. Mas a regra é clara: em democracia somos todos iguais, tenhamos ou não sido bafejados pelos favores da natureza ou do divino. Nesse sentido, a democracia é profundamente espiritualista. É algo que se eleva acima da natureza mas que se recusa à transcendência, é uma invenção humana que recusa que o Homem possa ser apenas uma emergência natural do seu corpo, mas também a rarefação mágica de um anjo. A limitação democrática, o seu destino de igualdade e fraqueza, é afim da kénosis divina: a renúncia de deus à sua soberania, fazendo-se humano, Jesus de Nazaré. Sendo fraca, a democracia é a mais poderosa das religiões, a mais cristã.

Dizendo a coisa claramente, a democracia rejeita qualquer tipo de reducionismo naturalista, justamente porque acha que a natureza, o pré-humano, nada tem de sábio senão a evolução cega (o que claro, é tudo menos pouca coisa). Pelo contrário do naturalismo, procurando o desmedido, a democracia é de uma profunda sageza, porque sabe que o homem é mais que terra e cinza, quiçá talvez capaz de “curtocircuitar” a própria evolução natural de onde provimos, desejando abrir-lhe os olhos dando-lhe um sentido. Pelo menos o sentido de uma evolução democrática, da descriminação do bem e do mal, do justo e do injusto, ainda que temporariamente, ainda que numa escala eventualmente irrelevante, se temporal e cosmicamente referida. Mas um sentido mínimo sempre é melhor que sentido nenhum.

O Senhor Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE Business School em Portugal, uma escola de negócios do Opus Dei, acha, porém, que a democracia produz resultados de sensibilidade e moral inferiores à natureza e aos notáveis instintos animais não humanos (particularmente dos gatos, que em criança se dedicava a torturar: “Quando miúdo divertia-me a metê-los em barris de água da chuva para os ver saltar como uma mola e fugir como uma seta”) e que nessa animalidade deveríamos procurar as orientações éticas humanas, em especial no caso do aborto, que, num arremedo de loucura ética, considera equivalente a “aterrorizar e liquidar vidas inocentes aos milhões”.

O que sempre me espanta neste tipo de perigosos fundamentalistas religiosos, como o Senhor Eugénio Viassa Monteiro, é aquilo que de há muito se conhece como reducionismo naturalista. É, no fundo, que em nome de uma ideia de Deus, e de uma crença determinada, se portem como ateus e materialistas ridículos, reduzindo o humano ao instintivo, ao genético, à pura matéria de pó e miséria, a uma ocasionalidade química e física. O que me espanta, pois, é como um religioso pode transformar-se, e tão facilmente, como disse o Pastor James Anderson no século XVIII, num “ateu estúpido”, mesmo e sobretudo usando cilício e mortificações a horas certas. Mil vezes, vezes mil o ateísmo normal.

Naturalismo, Democracia e Aborto – por Francisco Teixeira [professor do Ensino Secundário], jornal Público, 27 de Maio de 2015, p.46-47 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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