Como surgiu afinal o Panteão ou o Pantheon? Podemos obviamente
recordar o santuário de todos os deuses, na Grécia ou na Roma antigas. Mas os
túmulos da memória, os memoriais ou os cenotáfios (placas que recordam os que
morreram com “fama de heróis”) aparecem desde a Antiguidade e são retomados ao
longo da história. Foi, porém, a Revolução Francesa que criou o Panteão como
lugar oficial de culto nacional dos “notáveis”. Mirabeau e Voltaire terão sido
os primeiros a ocupar a igreja de Sainte Geneviève, laicizada com a Revolução e
transformada em Panthéon National. E continuaram a entrar nela figuras
ilustres até porque o movimento republicano foi ali — como veio a ser em
Portugal — animado pelo Positivismo de Comte, que criou uma “religião da
Humanidade”, na qual se apresentavam como exemplos os mortos ilustres, quer no
Panteão, quer no Calendário positivista, quer nos Centenários, quer mesmo em
templos construídos para o efeito. Mas panteões, oficiais ou não, existem de
uma forma ou de outra em muitos países e em diversos lugares, com
personalidades que se crê terem feito parte fundamental das suas histórias
nacionais, sejam reis, governantes (mesmo que viessem a ser considerados
ditadores), cientistas, artistas ou escritores. A Basilica di Santa Croce,
em Florença, é disso um peculiar exemplo.
Portugal não deixou de seguir o mesmo rumo. É claro que se quis
panteonizar os mosteiros da Batalha (onde estão alguns dos reis da dinastia de
Avis, mas também os dois túmulos dos “soldados desconhecidos” da Grande Guerra,
numa forma de a República eternizar o povo combatente e sacrificado, anónimo,
que se repetiu em todas as vilas e cidades em múltiplos monumentos, por vezes
com a identificação dos “heróis”) e dos Jerónimos (onde foram sepultados
membros da Casa Real — que teve o seu Panteão da dinastia de Bragança em S.
Vicente de Fora — mas onde também se celebram Camões, Vasco da Gama e Alexandre
Herculano). E é verdade que em Coimbra houve a prática, já mais recente, de
conceder à igreja de Santa Cruz o sentido de “Panteão Nacional”, pois ali estão
sepultados, em ricos túmulos do século XVI, os dois primeiros reis de Portugal
(D. Afonso Henriques e D. Sancho I). Todavia, o liberalismo quis criar, como na
França, o seu próprio “Panteão Nacional”, que surgiu por decreto de Passos
Manuel de 1836 sem lugar definido, assim como a I República em 1916 (em tempo
de governo de guerra da “Aliança Sagrada”, de António José de Almeida e de
Afonso Costa) deliberou, por lei, instituir o Panteão Nacional na igreja sempre
inacabada de Santa Engrácia, obras eternas, iniciadas no século XVIII e cuja
imagem foi sintetizada no provérbio popular de “obras de Santa Engrácia”.
Mas o certo é que, na prática, o Panteão Nacional é uma obra do
Estado Novo, pois só em 1 de Dezembro — dia da Restauração — do ano de
1966 foi inaugurado, com a presença do Cardeal Cerejeira, do presidente da
República Américo Tomás e do presidente do Conselho Oliveira Salazar.
Recordemos que estávamos então em plena “Guerra do Ultramar”, em que “heróis”
eram celebrados todos os anos pelo 10 de Junho e em que Eusébio representava
então o “ultramarino” negro — tão português como outros — que deslumbrava o
mundo na “equipa das quinas”. Para ali foram então trasladados os corpos dos
escritores Almeida Garrett, Guerra Junqueiro e João de Deus, liberais e
republicanos, que, devido ao seu sentir nacionalista e popular, não deixaram de
sensibilizar o salazarismo. E vieram também Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar
Carmona. Ou seja, o Estado Novo manteve-se respeitoso em relação ao regime
republicano, sepultando ali Teófilo, o primeiro presidente da República, que o
foi na qualidade de presidente do Governo Provisório de 1910-1911; o presidente
Sidónio, que, de alguma forma, e sem dúvida de modo indevido, era em certos
meios considerado o precursor do Estado Novo e até do fascismo; e o seu próprio
presidente mais carismático, Carmona, que o fora desde 1926 (ainda na Ditadura
Militar, considerada “Nacional”) até 1951, ano da sua morte. Afinal era o naipe
dos políticos “imortais” que se poderia esperar.
Depois de 1974, verificou-se um novo rumo, com algumas
contradições, como têm sido ambíguos e contraditórios os caminhos depois de
Abril, onde um ideal socialista ou, pelo menos, social se mistura, altera ou é
negado pela força avassaladora do neoliberalismo, que se vai afirmando e
consolidando nesta “Europa” dominada por uma nova onda capitalista. Assim,
afirma-se também um verniz nacional ou mesmo nacionalista, ao lado de uma
prática anti-social, com uma demagogia que, espantosamente, vem de todo o lado,
abalando uma coerência que ainda se vislumbra em alguns movimentos políticos.
Para o Panteão vieram Humberto Delgado que, além de ter sido o
mais combativo candidato à presidência pela oposição, fora morto pela PIDE em
Villanueva del Fresno. Para ali foi num carismático 5 de Outubro de 1990, como
o poderia ter acompanhado Norton de Matos. Em 2004 veio Manuel de Arriaga, de
facto e de direito o primeiro presidente da República eleito, embora — como a
Constituição de 1911 mandava — em Congresso da República e não por sufrágio
universal. Aquilino Ribeiro, um dos mais significativos escritores da Respublica,
que melhor assimilou e divulgou de uma forma universal o falar popular das suas
terras da Beira, para ali foi em 2007, como poderia ter ido Torga e a sua alma
de independente e de duro trasmontano, ou o nosso único Nobel da literatura,
Saramago, cujas cinzas preferiu que repousassem pacatamente junto da oliveira
da sua terra-natal trasladada para junto da Casa dos Bicos. E, finalmente, veio
Sophia de Mello Breyner, em 2014, a poeta de Abril e de todos os Abris do Mundo
e dos Tempos. Amália veio, antes, em 2001, e Eusébio fechou o ciclo numa
trasladação apoteótica e de expressão popular própria deste tempo que vivemos.
Nenhum cientista, nenhum escultor, pintor, músico ou arquitecto lá está, nenhum
herói do 25 de Abril e da Liberdade conquistada nos quartéis e na rua em 1974.
Seria difícil a escolha e, quando tal ideia foi ventilada, acabou por não vir
Salgueiro Maia.
Quem vem a seguir? É esse o problema, para que queria dar a
minha opinião, com uma resposta ao mesmo tempo simples e complexa: “Ninguém”,
como a do “Romeiro” do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Assim
simbolizaríamos, em duas palavras, “Todos” e “Nenhuns” — afinal a “Alma
Universal da Pátria”, sem debates que não houve, neste país dominado pelas
elites do Poder, que se dizem representativas e que, nestes tempos pragmáticos,
se têm afastado de uma cultura crítica. O Panteão Nacional ficaria como uma
Memória da História, com as afirmações, as contradições e os silêncios que ela
nos coloca quotidianamente, a ponto de nos interrogarmos sempre: Que História?
Seria apenas, e era muito, um Museu vivo das suas representações, com as
dúvidas e as ambiguidades que lhe são próprias. Já o é afinal. Apenas seria
assim e de forma assumida para todo o Sempre.
Coimbra, 30 de Julho de 2015, no dia da
Jubilação de Fernando Catroga, um dos historiadores que melhor estudou a
Memória
“O Panteão Nacional” – por Luís
Reis Torgal [Professor catedrático
aposentado da Faculdade e Letras da Universidade de Coimbra, historiador], jornal
Público, 9 de Agosto de 2015, pp. 54-55 – com sublinhados nossos
J.M.M.
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