“O Século XX em Revista(s)” –
por Luís Miguel Queirós, in Jornal “Público”
As quatro principais revistas históricas do movimento
anarco-sindicalista português juntam-se este sábado a outras importantes
publicações já colocadas online pelo portal Revistas de Ideias e Cultura, uma
gigantesca base de dados que abre à navegação digital aquelas que foram as
grandes montras culturais do século XX.
As duas séries d’A Sementeira (1908-19), a Germinal (1916-17), o
suplemento d’A Batalha (1923-27) e a Renovação (1925-26), quatro revistas
fundamentais para a história da disseminação do ideário anarquista e do
desenvolvimento do movimento anarco-sindicalista português ao longo das
primeiras décadas do século XX, já podem ser integralmente consultadas e
pesquisadas online. É a mais recente
expansão do portal Revistas de Ideias e Cultura (RIC), um ambicioso
projecto dirigido por Luís Andrade e desenvolvido pelo Seminário de História
das Ideias do Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, em parceria com a Biblioteca Nacional e a
Fundação Mário Soares.
O objectivo, explica Luís Andrade, professor de Filosofia da
Universidade Nova, é “fazer o mapeamento da cultura portuguesa do século XX a partir
da análise sistemática do conteúdo das revistas tidas por mais significativas”.
Mais do que um arquivo digital, o RIC é uma base de dados
dotada de sofisticadas ferramentas de pesquisa e que permite ao leitor ou
investigador não apenas aceder ao conteúdo integral das diferentes publicações,
mas também consultá-lo a partir de uma série de critérios que podem cruzar-se
numa mesma busca e que incluem índices de autores (quer de textos, quer de
ilustrações), conceitos (por exemplo, anarquismo), assuntos (por exemplo, I
Guerra Mundial), nomes citados (distinguindo os singulares e os colectivos),
obras citadas ou nomes geográficos.
Suponhamos que o leitor está interessado em textos que abordem a
I Guerra Mundial: se fizer uma pesquisa geral no portal, encontrará 2153
artigos, distribuídos por várias revistas, que incluem quer as publicações
anarquistas já referidas, quer outras como A Águia, a Seara Nova
ou a Atlântida, para citar apenas algumas. Mas também pode pesquisar o
mesmo assunto apenas numa revista específica, ou cruzá-lo com outros critérios.
E se a Grande Guerra é um assunto de que naturalmente trataram todas as
publicações da época, se procurar um tópico bastante menos óbvio, como,
digamos, o haxixe, descobrirá com provável surpresa que Sampaio Bruno discorreu
sobre esta substância num artigo intitulado O Tabaco… em Heródoto,
publicado em 1913 n’A Águia.
(…) Com uma pequena equipa permanente – que inclui, além do seu
coordenador, um editor executivo, um documentalista, um informático, uma
analista de dados estatísticos e uma webdesigner –, mas contando com o
auxílio de investigadores especializados para cada uma das revistas a publicar,
a estratégia do portal tem sido a de se focar em sucessivos movimentos
culturais ou ideológicos para dar prioridade às principais revistas que lhes
estão associadas. Antes de se debruçar sobre as publicações anarquistas, o site
já disponibilizara online as revistas relacionadas com o movimento
cultural da Renascença Portuguesa, como a Nova Silva, A Águia ou A Vida Portuguesa, ou ainda as principais publicações associadas ao primeiro
modernismo, como Orpheu, Portugal Futurista, Sphinx, Exílio,
Centauro e Eh Real!.
E por vezes não se trata apenas de poupar aos investigadores, ou
a simples curiosos, muitas horas a preencher pedidos em bibliotecas. Alguns dos
números agora digitalizados e consultáveis estão em falta nas várias
bibliotecas públicas. Exemplo disso mesmo é a célebre e raríssima edição 11/12
da 4.ª série d’A Águia, de 1929, que foi apreendida ainda na tipografia porque
denunciava um plágio de Gustavo Cordeiro Ramos, ministro da Instrução Pública
em sucessivos governos da ditadura militar e no início do Estado Novo. “Só está
representado na Biblioteca Nacional por um postal onde se informa que este
número não foi posto à venda por motivos imprevistos”, diz Luís Andrade.
Outra façanha de monta deste portal foi a digitalização integral da Seara Nova, abarcando todas as suas (muito) diversas fases, desde a
fundação, em 1921, até 1984, num total de 1604 números, correspondentes a
31.500 páginas e a cerca de 21.500 peças de mais de três mil autores.
Para cada uma das revistas publicadas, o interessado encontra
não apenas a reprodução digital de todos os números, mas também apresentações
que procuram caracterizá-la e situá-la no seu contexto histórico, secções que
reúnem os seus manifestos e outros textos de dimensão programática, uma
antologia de literatura passiva sobre a publicação em causa e alguns estudos
reproduzidos em texto integral.
Há também uma secção autónoma dedicada às polémicas, um modo de
discussão pública aliás muito característico das revistas, e que só por
aproximação corresponde àquilo a que hoje se chama uma polémica na imprensa ou
nas redes sociais. Luís Andrade recorda, por exemplo, a famosa controvérsia
entre António Sérgio e Pascoaes, nas páginas d’A Águia, a propósito do
saudosismo, ou “a discussão entre Álvaro Cunhal e José Régio acerca do
significado social da literatura”, na Seara Nova. Mas também nas revistas
anarquistas agora digitalizadas se encontram polémicas, designadamente as que
ilustram o confronto de posições perante a Grande Guerra ou a Revolução de
Outubro.
A barra de navegação inclui ainda um “magasin”, que joga
foneticamente com “magazine” (revista), mas que aqui alude mais a um tipo de
armazém comercial ecléctico, onde se vende um pouco de tudo. É nesta secção que
se acumulam todos os materiais que, não pertencendo formalmente às revistas em
causa, a elas estão directamente ligados, como as separatas, ou que permitem
conhecer melhor a respectiva história, como a correspondência travada entre os
seus fundadores, testemunhos diversos e outros documentos. No “magasin” da Seara Nova é possível encontrar, salienta Luís Andrade, “vários dossiers do seu
arquivo editorial, até agora inéditos”.
Obra em aberto e em constante expansão, o portal anuncia já
também na sua homepage os vários títulos que deverão ficar disponíveis ainda
este ano e que incluem a magnífica Contemporânea, dirigida por José Pacheko
entre 1922 e 1926, com um primeiro número isolado saído em 1915. Ilustrada por
artistas como Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Eduardo Viana ou Dórdio
Gomes, contou entre os seus colaboradores literários com nomes como Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro ou Aquilino Ribeiro.
Outra importante publicação prometida para este ano é O Tempo e
o Modo, fundada em 1963 por um grupo de católicos progressistas como Alçada
Baptista, Bénard da Costa, Pedro Tamen ou Nuno de Bragança. Está ainda prevista
a digitalização de Alma Nacional, uma revista republicana lançada literalmente
nas vésperas da queda da monarquia, e de outras publicações do início do século
XX, como Dionysos, dirigida em Coimbra por Aarão de Lacerda, ou A Renascença,
de Lisboa. Sol Nascente, dos anos 30, ligada ao neo-realismo, e a mais recente Raiz
e Utopia, já do pós-25 de Abril, são outros títulos previstos para 2018. E o
Revista de Ideias e Cultura pretende começar a apostar também em publicações
com motivações mais específicas, como a revista feminista Sociedade Futura,
dirigida por Ana de Castro Osório, ou A Construção Moderna, que considera “uma
peça fundamental da cultura arquitectónica e urbana das duas primeiras décadas
do século XX”.
Já a decisão de criar estes quatro novos sites agora consagrados
às revistas anarquistas ficou também a dever-se ao desejo de “repor a memória
de uma das correntes principais do pensamento e da intervenção social do século
XX, remetida ao esquecimento de forma pouco inocente após a revolta da Marinha
Grande de 18 de Janeiro de 1934”, diz Luís Andrade, numa provável alusão ao
modo como o PCP veio a reescrever a história desse levantamento, que acabaria
por marcar o fim da predominância do anarco-sindicalismo no movimento operário.
Mas não só os que se interessam pelo anarquismo terão boas
razões para consultar estas revistas. Uma rápida consulta aos dados
estatísticos que acompanham, em secção própria, cada um destes títulos, permite
verificar, por exemplo, que os apreciadores de Ferreira de Castro encontrarão aqui
nada menos do que 181 artigos dispersos assinados pelo romancista, a maior
parte no suplemento d’A Batalha, mas também na Renovação. E os apaixonados pela
ilustração podem deliciar-se com as dezenas de trabalhos criados para as mesmas
revistas por Stuart Carvalhais ou pelo notável Roberto Nobre, que acumulava as
artes gráficas com a crítica de cinema.
Estes levantamentos de ocorrências estão também cheios de
surpresas: quem diria, por exemplo, que o nome mais citado nas duas já
referidas revistas da Confederação Geral do Trabalho é o de Jesus Cristo, ou
que a obra mais citada n’A Águia foi a revista Mercure de France? Mas estes
resultados imprevistos, se podem ser mais ou menos anedóticos, ou ter
explicações prosaicas, também “fornecem a informação necessária quer para
testar as leituras correntemente aceites, quer para suscitar interrogações até
hoje não formuladas” sobre estas revistas e movimentos, observa Luís Andrade. O
que torna este portal uma ferramenta doravante indispensável para quem queira estudar
umas e outros.
O Século XX em Revista(s) –
por Luís Miguel Queirós, Jornal Público, 31 de Março de 2018, pp. 24/25 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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