segunda-feira, 15 de outubro de 2018

ALMADA NEGREIROS, IDENTIFICAÇÃO COM LISBOA


“Almada Negreiros, Identificação com Lisboa” – por António Valdemar, in Tempo Livre, Setembro-Outubro 2018

A relação com a cidade que lhe abriu o caminho para a arte, a literatura e outras formas de intervenção que que também lhe consagrou a memória.   
A diversidade de percursos de Almada Negreiros, o artista plástico, o poeta, o romancista, o novelista, o dramaturgo e o panfletário tem uma relação de diálogo com Lisboa. Foi tão íntima essa relação física e cultural que se poderia dizer que Lisboa era a sua casa. O tempo de Almada Negreiros em Paris foi rápido e disperso. Já o tempo de Madrid foi mais demorado e teve consequências decisivas na sua obra. Uma das mais relevantes terá sido o contato direto e profissional com a arquitetura permitindo–lhe, no regresso a Portugal, integrar–se nas equipas que realizaram grandes edifícios e incluíram trabalhos de Almada com dimensões assinaláveis.

O Chiado, com a sua vida cultural e social, ficou associado aos primeiros e mais incendiários anos da afirmação de Almada Negreiros. Apresentou–se, em 1912, no Iº Salão dos Humoristas, que decorreu no Grémio Literário. E quando não é no Chiado é nas suas fronteiras que o deparamos nos momentos mais exuberantes e mais provocatórios. Realizou, a primeira exposição individual, em 1913, na Escola Internacional, na rua da Emenda. A Ilustração Portuguesa referiu a exposição, reproduziu alguns desenhos, publicou a fotografia de Almada.
Entretanto, Fernando Pessoa escreveu sobre Almada: «Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis, se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder – lhe inteligência absoluta.» Começou a visibilidade pública de Almada. Mas começou, sobretudo, o convívio e cumplicidade com Pessoa. Abria – se o caminho para o Orpheu.


Almada viveu, escreveu, desenhou, pintou, na rua do Alecrim, uma das fronteiras do Chiado. Em 1915, o ano do Orpheu, tinha 22 anos. A colaboração no Orpheu, limitou-se a pequenos textos com o título genérico Frisos e que se podem inserir na área moderada do primeiro número daquela revista. As garras e as asas de Almada vão evidenciar-se no Manifesto Anti Dantas, na Cena do Ódio e na Engomadeira. O Manifesto Anti Dantas  tornou-se a ofensiva mais feroz contra Júlio Dantas figura do maior destaque na literatura, no teatro e na política, ao mesmo tempo que arrasou outras personalidades e atingiu as instituições mais conceituadas.

A renovação da língua portuguesa ocorreu com a Ode Triunfal e a Ode Marítima de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos e com a Cena do Ódio de Almada Negreiros que  está em paralelo com a desconstrução criativa e o furor épico de Álvaro de Campos e a Engomadeira, também  de Almada Negreiros.
Modelo da escrita e da inovação narrativa a Engomadeira assinala um outro ciclo perante a língua e o imaginário de Eça de Queiroz, que já se demarcara de Camilo e de Herculano. E o episódio da chave antecipou o surrealismo. Em França e em Portugal. A rutura com a escrita tradicional vai prosseguir no romance Nome de Guerra, a principal obra de ficção de Almada que também denuncia os comportamentos institucionalizados. «Temos sempre – adverte – de perder o nosso tempo em desfazer o bem que os outros fizeram por nós»


Em 14 de Abril de 1917, Almada apresentou no São Luís (antigo Teatro República) O Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, uma explosão de energia para romper a indiferença e sacudir a rotina. Também, em 1917, em Novembro participou na revista Portugal Futurista, outro marco fundamental que reúne a colaboração de Robert e Sónia Delaunay, de Marinetti, de Apollinaire, de Blaise Cendras e de outras personalidades do futurismo internacional. Publica os manifestos futuristas de Almada e Álvaro de Campos.

Um dos focos da polémica introduzida pelo Portugal Futurista é o texto de Almada Negreiros Saltimbancos - «contrastes simultâneos”, de cunho intersecionista, e que desencadeou escândalo ao pormenorizar: «soldados em exercício na parada do quartel, garanhões militares em ato de cobrição de éguas, paisagem rural e paisagem de circo». Portugal participava na guerra e esta alusão direta ao que se verificava com as atividades do Corpo Expedicionário português levou a polícia a apreender o primeiro e único número do Portugal Futurista.
Um mês depois, Diaguilev e companhia dos Bailados Russos ao chegarem a Lisboa são apanhados de surpresa com a revolução de Sidónio Pais. Apesar disso realizam dois memoráveis espetáculos, no Teatro de São Carlos e no Coliseu de Lisboa. Em Abril de 1918, Almada Negreiros fez a coreografia e desenhou os figurinos do bailado A Princesa dos Sapatos de Ferro. Pisou o palco e dançou os papéis da Bruxa e do Diabo.

Vai ser ainda no Largo do Calhariz, outra fronteira do Chiado, que Almada proferiu na Liga Naval, em Maio de 1921, a conferência A Invenção do Dia Claro, um ano depois publicada em livro com a chancela da Olisipo, uma das aventuras editoriais de Fernando Pessoa. Estabeleceu o reencontro da poesia com o desenho e a pintura; aprofundou a reflexão sobre a linguagem e através dela sobre a condição humana.
Outra proclamação futurista de Almada Negreiros verificou – se no Chiado Terrasse, a 18 de Dezembro de 1921, no Comício dos Novos. Presidiu Gualdino Gomes e, entre a assistência perplexa, via–se a Preta Fernanda, dona da mais famosa casa de prostituição. Foi um dos escolhidos para decorar a Brasileira do Chiado que, juntamente com o Bristol Club, promoveu em espaços públicos a consagração da arte moderna.

Expôs, ao regressar de Espanha, nos anos 30, na UP, uma galeria na rua Serpa Pinto, dirigida por António Pedro, onde Vieira da Silva apresentou os primeiros trabalhos. A editorial Ática, fundada por Luís de Montalvor, um dos participantes do Orpheu – e autor do título da revista – teve a primeira sede na esquina da rua do Carmo, com a rua Garrett. Ao lançar, a partir de 1942, a obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa, Montalvor colocou na capa de cada volume um desenho de Almada, um Pégaso, símbolo mitológico e vivo da poesia em movimento. A amizade com Fernando Amado incorporou-o na história do Centro Nacional de Cultura ao debater, em 1946, a «posição do artista na sociedade».

O vínculo de Almada a Lisboa decorreu nos seus cafés, nos seus teatros, nos seus clubes, nas suas livrarias, nos seus museus, nas suas galerias e nas suas próprias esquinas. Sem procurar fazer um levantamento exaustivo acrescento que residiu mais de 30 anos no Rato. Morava na rua S. Filipe Nery e tinha atelier na rua Rodrigo da Fonseca.
Está representado nos mais diversos bairros e, em muitos deles, em contacto diário com a população e com todos os que chegam a Lisboa. Retratado por Júlio Pomar e por António, em duas estações do Metro. Pinturas e desenhos de Almada, transpostas para azulejo, revestem outra estação do Metro.

No Porto de Lisboa, as duas gares marítimas, a de Alcântara e a da Rocha de Conde de Óbitos, têm frescos de Almada, com alusões ao Tejo, á expansão marítima, á história de Lisboa, a motivos e figuras celebrados por Cesário Verde, o poeta da cidade e um dos mestres da geração de Orpheu, em especial Fernando Pessoa e Almada Negreiros
 
Na Avenida da Liberdade, na antiga sede do Diário de Notícias, o primeiro edifício construído de raiz, em Portugal, para a instalar um jornal e todos os seus departamentos ficou com a marca de Almada: na fachada e nos frescos do grande átrio e, ainda no rés-do-chão, no espaço de acesso á redação e administração. Próximo no Hotel Ritz, três grandes tapeçarias, com recriações co Centauro, ocupam parte do salão principal.
Nas Avenidas Novas, a igreja de Fátima, o primeiro edifício de arquitetura moderna na arte religiosa, ficou com vitrais de Almada Negreiros. Perto, a Fundação Gulbenkian tem logo no átrio o painel Começar, a síntese do encontro de Almada com a geometria. No Campo Grande, na cidade universitária preencheu, com a representação de figuras tutelares as fachadas da Reitoria, da Faculdade de Direito e da Faculdade de Letras. Nesta última destacam - se Fernando Pessoa e os heterónimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Ainda não ganhara dimensão nacional e internacional Bernardo Soares. Apenas se conheciam fragmentos do Livro do Desassossego.


A memória de Almada Negreiros perdura nos Museus e em grandes edifícios públicos que marcaram a transformação e expansão da cidade, num diálogo com as vanguardas europeias. Deu o nome a uma rua, em Olivais Sul; e a uma escola, na Charneca do Lumiar, na Urbanização Alta de Lisboa. Está consagrado num monumento (na entrada ou saída do viaduto Duarte Pacheco) e noutro monumento, na avenida Ribeira das Naus, junto ao Tejo, uma estrutura de ferro que incorpora o autorretrato de 1949.

Para Almada, Lisboa constituiu a arena dos grandes combates, uma das linhas de intervenção do grupo e da geração de Orpheu, num momento histórico da cultura portuguesa. Lisboa foi a casa de Almada, onde cabia a ambição de atingir o mundo.
Almada Negreiros, Identificação com Lisboa – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], Tempo Livre, Setembro-Outubro 2018, p. 8 – com sublinhados nossos.
 
António Valdemar
J.M.M.

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