“O mestre sem cátedra” – por António
Valdemar, in revista EXPRESSO, 11/12/2020
Passam 100 anos sobre a edição dos “Ensaios” de António Sérgio,
decisivos na luta contra o salazarismo e na ação política e partidária
necessária para consolidar o regime democrático instaurado no 25 de Abril
“Cem anos depois, qual a recetividade, a projeção e a influência
dos “Ensaios”
de António Sérgio, que promoveram
substancialmente a formação cultural e incidiram a conduta política de várias
gerações?
O legado de Sérgio
refletiu-se na luta da oposição ao salazarismo e, também, na ação política e
partidária para consolidar o regime democrático instaurado no 25 de Abril de
1974. Discípulos e seguidores de Sérgio
integraram os primeiros governos e legislaturas, as cúpulas do PS e do PSD e
pertenceram a muitas autarquias. A Constituição Política da República de 1976
incluiu reivindicações de Sérgio, no
capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias e, ainda, uma das suas batalhas
doutrinárias, o reconhecimento do sector cooperativo, num projeto de transição
para o socialismo.
Logo no primeiro volume dos “Ensaios” —
publicado em 1920, em Portugal e no Brasil — apresentou uma visão original de
problemas fundamentais da História de Portugal, propostas para uma educação
cívica e a reformulação dos métodos pedagógicos. Procedeu à
dissecação da obra literária de figuras que permaneciam intocáveis, caso de Guerra Junqueiro e de Teófilo Braga. Entre questões mais
pertinentes, destacou-se a interpretação da conquista de Ceuta, até então um
“torneio de príncipes” e uma expedição para “dilatar a fé e o império”. Para Sérgio, resultou de uma proposta do
responsável das Finanças de D João I, a fim de encontrar solução para problemas
básicos de economia do país. Permitiu a ascensão de uma nova classe, a
burguesia (em oposição à nobreza velha), que se batera e triunfara em
Aljubarrota e vai estimular nos Descobrimentos marítimos as ambições do alto
comércio cosmopolita.
“AFINADOR DE PIANOS”
Sérgio considerava a polémica necessária e uma das componentes da sua intervenção intelectual e cívica. Justificava esta atitude visceral ao salientar que, apenas, saía à estacada porque se limitava a explicar “as suas próprias ideias quando as vê desentendidas por leitores distraídos ou, quando, as crê deturpadas, nada mais. As outras criaturas é que polemicam comigo porque sempre se irritam quando lhes quero explicar”. “Foi reconhecendo este meu feitio” — acentuou — “que certo crítico observou algures que eu não sou, intelectualmente um esgrimista, senão que sim um afinador de pianos intelectuais.” Em Portugal, escreveu ainda, “profissão ingrata e de bem pouco préstimo”.
Ficaram célebres as polémicas com Jaime Cortesão e Teixeira de
Pascoaes a propósito da filosofia da saudade e a posição do grupo da
Renascença Portuguesa; a controvérsia com Malheiro Dias acerca do sebastianismo e da exaltação
nacionalista; ou com Manuel Múrias
a propósito do seiscentismo (retomando a tese de Antero das causas da
decadência, a partir do século XVI) ou, ainda, ao enfrentar José Marinho e, em especial, Sant’Anna Dionísio, sobre o criacionismo
de Leonardo Coimbra.
Outra polémica de referência decorreu com Cabral Moncada, em torno da relação da política e da ciência jurídica, os meios e os fins, o valor e o sentido da democracia. Prolongou-se, durante anos e, de parte a parte, nunca houve qualquer palavra agressiva, qualquer alusão irritante. Foi um debate de ideias exemplar.
Travou, nos anos 40, na revista “Vértice” uma polémica com Bento de Jesus Caraça que extremou, entre ambos, desacordos ideológicos e políticos. Caraça opunha-se a conceptualizações metafísicas e rejeitava o empirismo historicista e o racionalismo experimentalista. A última polémica de Sérgio foi em 1952 com António José Saraiva, também, na revista “Vértice”. Saraiva — ao tempo era comunista — recenseara a reedição do primeiro tomo dos “Ensaios”, formulara reparos acerca da tese de Sérgio sobre a tomada de Ceuta e o idealismo de Sérgio, no prefácio da tradução portuguesa de “Problemas da Filosofia”, de Bertrand Russell. A réplica de Sérgio visou, mais uma vez, demarcar-se do materialismo dialético e do marxismo.
Não se pode classificar uma polémica tal como as outras a questão surgida com a reedição da “História de Portugal”, de António Sérgio (coleção da Labor, de Barcelona, que gozava de reputação universitária nos países hispânicos). Foram introduzidos, sem consentimento do autor, parágrafos de elogio à política de Salazar. Sérgio limitou-se a denunciar o abuso e a instaurar um processo-crime (que ganhou). Ficou provado que não era uma atualização, mas uma afronta às suas ideias e à sua militância política.
A RETA FINAL
A década de 50 deu lugar a uma das fases de mais intensa
produção intelectual de Sérgio.
Completara 70 anos em 1953. Encontrava-se na reta final. Esgotava as energias
numa atenção concentrada nas grandes questões culturais que sempre o
mobilizaram e nos comentários aos temas políticos, sociais e culturais do dia a
dia.
Publicou mais dois tomos dos “Ensaios”, o VII,
em 1951, e o VIII, em 1958. Em ambos, inseriu prefácios para as obras completas
de Oliveira Martins (“Teoria do
Socialismo”, 1952; “Portugal e o Socialismo”, 1956; “O Carácter do Socialismo
de Antero”, 1952); e uma interpretação da “História Trágico-Marítima”,
para uma edição anotada e comentada. Mas avultava outro ensaio sobre os
primórdios da nacionalidade, a presença de lusitanos e romanos, a integrar numa
“História de Portugal” que não concluiu. O primeiro volume da “História de
Portugal”, pouco depois de publicado, foi apreendido. Alfredo Pimenta, num folheto, lançou o
alerta à PIDE e à censura.
Os oito volumes de “Ensaios”,
nas obras completas, não correspondem à totalidade da produção. Campos Matos não só condensou, para uma
ampla divulgação o que é fundamental para conhecer Sérgio, mas fez, também, uma exaustiva bibliografia que revela
inúmeros dispersos, em revistas e jornais, alguns dos quais requerem a edição
em livro.
A intervenção pontual ficou reunida em quatro publicações de
grande impacto na opinião pública dos anos 50: “Cartas de Problemática”
(1952-1955); “Cartas do Terceiro Homem” (1953, 1954 e 1957); “Antologia
Sociológica” (1956 e 1957) e “Pátio das Comédias” (1958).
Antes de editados em opúsculos, os textos saíram nos jornais da oposição — “República”
e “Diário de Lisboa”. Houve cortes drásticos da censura, a mutilar e a
distorcer a análise, a esvaziar a crítica e a coragem da indignação.
O projeto de Sérgio
residia na sua teorização do Terceiro Homem, a formação do jovem e do cidadão,
de modo a pensar e a intervir de forma ativa e responsável. Mas, na
generalidade, insistia na urgência da liberdade de opinião, do exercício
da crítica e da cooperação e diálogo com todos os povos do mundo.
Preconizava a necessidade da modernização da agricultura, o desenvolvimento da
indústria, a formação de quadros especializados, a reorganização do sistema
económico, da política de saúde e da Segurança Social, no âmbito da reforma do
Estado e da Administração Pública.
Uma sociedade democrática para Sérgio deveria alicerçar-se num sistema económico com um circuito
produtivo assente numa estrutura cooperativa. Empenhou-se na criação de
um movimento cooperativo, a fim de proteger os consumidores. Contudo, a
doutrinação de Sérgio não aprofundou
os mecanismos do funcionamento das cooperativas. Coube a Henrique de Barros definir as regras e estabelecer as bases
orgânicas das cooperativas de produção e a sua articulação com a realidade.
MILITÂNCIA POLÍTICA
A atividade imparável de António
Sérgio ultrapassava os limites da resistência física e psicológica de um
homem com 70 anos. Tinha uma vida bastante sóbria, embora desgastada por
exílios, prisões e falta de recursos económicos para assegurar a subsistência. Assumiu
protagonismo em duas campanhas presidenciais, a de Quintão Meireles e a de Humberto
Delgado.
Era Jaime Cortesão,
em 1958, o candidato predileto, quase consensual, da oposição à Presidência da
República. Perduravam, contudo, as denúncias n’“Os Budas”, um dos
panfletos ferozes de um exilado português na Espanha republicana. Acusava Cortesão de ter uma vida confortável,
enquanto outros passavam fome. O nome de Cortesão,
já se apontava, aliás, em 1952 num texto de Mário de Castro, na “Seara Nova”. Todavia, Sérgio e Henrique Galvão optaram por Delgado,
a fim de “rebentar o regime por dentro”. Iniciada a campanha, Sérgio rejubilou com o impacto da
apresentação pública de Delgado, do
rastilho que se estendeu a todo o país, embora prevendo a falsificação das
eleições.
Sérgio ficou, contudo, muito perturbado com as peripécias de Humberto Delgado durante o asilo
político na embaixada do Brasil, em Lisboa. Excedeu, e em muito, o previsível.
Multiplicaram-se os conflitos no Brasil e noutros países, envolvendo
personalidades da oposição, num processo agitadíssimo que culminou no
assassínio por uma brigada da PIDE.
Devido à participação intensa na campanha eleitoral, aos artigos
que publicou, às entrevistas que concedeu atingindo Salazar e desmascarando o salazarismo, em novembro de 1958, António Sérgio era preso,
interrogado pela PIDE e, a seguir, enviado para o forte de Caxias. Também foram
interrogados e presos Jaime Cortesão,
Mário de Azevedo Gomes e Vieira de Almeida. O pretexto era, fora
do tempo de “liberdade” da campanha eleitoral, promover a organização da vinda
a Portugal de Aneurin Bevan,
deputado trabalhista britânico, e de Pierre
Mendès France para fazerem
conferências sobre democracia.
RECONHECIMENTO PÓSTUMO
António
Sérgio faleceu, em Lisboa, a 24 de janeiro de 1969, no Hospital da
Cruz Vermelha, após dez anos de doença. Assumiu a responsabilidade pessoal e
política da escolha e do falhanço de Humberto Delgado. (Disse, na minha
presença, a Álvaro Salema: “Salazar
vai continuar. Não se demite.”) E caiu numa progressiva depressão que
interrompeu a atividade intelectual e a luta política. Sem perder a lucidez,
perdera o interesse em tudo aquilo que sempre o atraía e motivava.
Os adversários não ignoravam que António Sérgio elegera como norma de conduta — ele próprio o
declarou — “soltar amarras, para singrar no oceano da procura livre, com o
horizonte limpo a todos os rumos e aberto à audácia da investigação”. A
rejeição do pensamento único em todos os domínios. A defesa do pluralismo de
opinião. Tinha orgulho na sua independência. Pronunciava-se com frontalidade.
Daí a influência que exerceu na sua geração, na geração anterior à sua e nas
gerações que lhe sucederam. Sejam quais forem as objeções, muitas propostas que
avançou ainda não foram concluídas. E muitas polémicas que travou ainda não se
encontram encerradas.
O mestre sem cátedra – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências], E – Revista Expresso,
11 de Dezembro 2020, p. 58-59 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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